O Barão e o Exilado

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Você sabe que, com a abertura das fronteiras brasileiras como um país independente no século XIX, vários naturalistas europeus organizaram expedições para conhecer nossa natureza. Como comentei em livros anteriores, o país era visto como um imenso e fascinante paraíso a ser pesquisado.

Segundo Ângela Ancora da Luz, há uma expressão em alemão, Fernweh, que pode descrever o que muitos desses homens sentiam: a nostalgia pelo distante, pelas terras incomuns, pelas paisagens desconhecidas, ainda não vivenciadas.

O czar da Rússia pretendia que seu país se aproximasse do Brasil, na época uma economia comparável à norte-americana. O Barão Langsdorff, médico alemão naturalizado russo, foi financiado pelo czar para comandar o que talvez tenha sido a maior expedição científica ao Novo Mundo.

O Barão Gorg von Lansdorff (1774-1852). Veio pela primeira vez ao Brasil em 1813. Retornou definitivamente à Europa em 1830.

Ela foi uma iniciativa pioneira, principalmente por estudar de forma intencional não só a flora e a fauna do país, mas também seus habitantes, os indígenas – seus costumes, sua distribuição, seus idiomas. Composta por quatro dezenas de integrantes, incluía gente formada em ciências naturais, desde astronomia a botânica e zoologia.

A Expedição Langsdorff estendeu-se por cinco anos e percorreu impressionantes 15 mil km de nosso interior, do Sudeste ao Centro-Oeste e à Amazônia. De maneira inteligente, recorreram principalmente aos rios, por exemplo, no início o Tietê e o Paraná, depois o Paraguai e o Cuiabá e, no fim, o Tapajós e o Amazonas. Retornaram ao Rio pelo mar a partir de Belém.

Foi uma expedição sofrida, com colapsos, fracassos e mortes. Sua produção foi enorme, com o inventário de algo como 15% de nossa flora. Este acervo ficou perdido em São Petersburgo durante um século, só sendo divulgado ao público a partir de 1980. Mas o valor científico foi inestimável – e as imagens criadas pelos artistas Rugendas, Taunay e Florence ajudaram a representar junto aos europeus o gigantesco e exótico país que emergia nos trópicos.

Mas afinal quem foi Georg von Langsdorff? Rico nobre alemão, formou-se em medicina e exerceu com sucesso e ainda jovem sua profissão em Portugal, onde se tornou fluente no idioma. Veio pela primeira vez ao Brasil no começo do século, junto com uma missão científica russa em Santa Catarina. Mudou-se dez anos depois para o Brasil, como cônsul da Rússia.

Desenho de época da Fazenda Carioca, onde Langsdorff recebia os naturalistas de passagem pelo Rio de Janeiro (Fonte – Divulgação).

Comprou no Rio a Fazenda Mandioca, local obrigatório de passagem dos naturalistas que nos visitavam. Só imagino os emocionantes diálogos que aí aconteceram entre o mineralogista von Eschwege, que criou o termo Espinhaço, o brilhante Saint Hilaire, talvez o mais instigante dos exploradores europeus, o experiente viajante inglês Luccok, a dupla Spix e Martius da célebre missão austríaca ao país, os naturalistas e exploradores Pohl e Neuwied e tantos outros.

Langsdorff era um homem curioso e destemido. Até hoje se especula o que o teria levado a trocar o seu castelo europeu pela selva tropical – a sede de aventura, a procura do conhecimento, o encontro da fama ou a busca da riqueza? Sua mulher chegou a fazer parte da expedição, mas teve de ser preservada quando engravidou – mérito do Barão, que teve tempo e energia suficientes.

Mas, ao acampar no Rio Juruena, contraiu uma febre tropical que o fez delirar e perder a razão. Logo após o retorno ao Rio, embarcou para a Alemanha, onde viveu longamente, sem ser jamais capaz de recordar o país onde vivera por vinte anos – e onde, dissera ele, gostaria de encontrar, nos anos que me restam, uma ocupação permanente para deixar esta vida de cigano e viver e morrer em paz.

 Durante a expedição, um de seus membros menos notáveis talvez tenha sido o artista francês Hercule Florence. Atraído pela vida marítima, ele já estava no Brasil quando aqui chegou a Expedição Langsdorff. Florence nela se engajou como pintor e desenhista. Deve-se a ele o relato da expedição, pois o diário do Barão ficou incompleto após sua doença.

Hercules Florence (1804-1879), que chegou ao Brasil em 1824 e nunca mais deixou o país.

Diferentemente dos demais naturalistas, Florence radicou-se no Brasil pelo resto da vida. Casou-se em Campinas com a filha de um importante político e teve uma vida de projeção em sua nova pátria. Era ainda um homem maduro quando ficou viúvo – casou-se de novo e teve mais sete filhos, afora os treze do primeiro casamento.

Mas Florence foi um cientista diferente, chamado de Da Vinci Tropical devido ao seu engenho. Acho a comparação exagerada pois, do que conheço, Florence teria sido um desenhista apenas mediano, com um traço pouco gracioso.

Desenho de Hercules Florence dos índios apiacás, encontrados durante a Expedição Langsdorff (Fonte – Divulgação).

Durante a expedição, criou um método de notação musical, para poder captar o canto das aves – chamou-o de zoofonia. Como ele disse: Mineralogia é estudo da natureza passiva. Zoologia é estudo da natureza ativa. Zoofonia é estudo da natureza falante.

Como não havia oficinas impressoras em São Paulo, desenvolveu a poligrafia, um processo de impressão para publicar os seus trabalhos. Foi autor do que chamou de papel inimitável, uma forma de impressão à prova de fraude, à semelhança do papel moeda.

Propaganda do chamado papel inimitável de Hercules Florence em 1870 (Fonte – Divulgação).

Publicou por breve tempo o primeiro jornal de Campinas e criou um método de taquigrafia. Pesquisou os céus e idealizou uma forma de arquitetura baseada nas palmeiras. Fundou com sua segunda esposa um colégio feminino e operou a Colônia Florence para produção agrícola em parceria com colonos.

Mais importante, usou a câmera escura e a luz solar para reproduzir imagens pela fotografia – e foi ele mesmo quem criou a palavra. Foi capaz de partir do negativo para gerar a primeira foto impressa. Sua invenção antecedeu a da descoberta oficial da fotografia por Daguerre por quase dez anos.

Mas estes inventos não receberam crédito na Europa: ele comentou que meus descobrimentos estão comigo, sepultados na sombra, meu talento, minhas vigílias, meus pesares, minhas privações são estéreis para os outros, (…) sou um inventor no exílio.

Imagem Fotográfica atribuída a Hercules Florence.

Do que você leu, pode-se imaginar que tanto Langsdorff como Florence deixaram extensa linhagem. Do primeiro, também com dois casamentos, se diz existirem um milhar e meio de descendentes. Diferentemente do pai, muitos dos filhos de Florence tiveram carreiras na Europa. Seu tetraneto, o advogado Antonio Florence, publicou recentemente uma preciosa edição de sua biografia. Neste país sem história, pelo menos pudemos recuperar a memória deste homem notável.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

1 comentário

  1. Otimo relato Alberto, muito bom. Povavelmente você conhece um livro do Boris Kossoy, mais dedicado a descoberta paralela da fotografia no Brasil por Hércule Florence, em todo o caso, mais adiante passarei as indicações do livro, que não estou lembrado agora. Abraco e obrigado pelo texto.

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