A Serra do Quiriri em dois tempos

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Eu e o Elcio Douglas Ferreira decidimos aproveitar o feriado de 7 de setembro de 2007 para fazer a travessia Quiriri – Monte Crista e pouco antes do amanhecer estacionamos o carro na divisa do Paraná com Santa Catarina, no pátio de um comércio a margem da rodovia, e iniciamos a subida da Serra do Quiriri com as cargueiras nas costas.

Seguimos alguns poucos quilômetros por uma estradinha rural que se aprofunda na floresta até um grande pasto a direita e umas poucas casas a esquerda, cruzamos a porteira e acompanhamos a cerca por outros mil metros ou mais, procurando uma trilha que penetra a mata.

Cruzamos os arames farpados e pouco depois encontramos o Rio Trovoadinha correndo sobre um extenso leito de pedras soltas. Subimos por ele uns poucos metros e cruzamos a corrente ainda acompanhando o rastro das vacas que descem de outro pasto mais adiante até identificarmos a trilha que se desvia a esquerda. A trilha é bem clara e muito parecida com a do Torre da Prata, penetrando na floresta densa e sombreada por grandes árvores cujas copas fecham o céu. Em pouco tempo chegamos a uma bifurcação. A esquerda leva ao rio e a direita sobe a montanha. É o último ponto em que se consegue água nesta encosta e foi um erro enorme não ir buscá-la.
 
A trilha sobe a face da montanha por um imenso desbarrancamento em fase de cicatrização onde a vegetação é baixa, nova e muito verde. O sol da manhã já está muito forte, mas o calor ainda não venceu o frescor da mata e desenvolvemos uma caminhada tranqüila pela encosta cada vez mais inclinada. As horas passam rápidas enquanto a montanha se verticaliza e próximo da cota 1000 a vegetação começa a mudar anunciando a proximidade de um cume. As bromélias descem para o chão e começam a aparecer as pequenas árvores finas e retorcidas enquanto o caminho zigzagueia pela encosta até se fixar numa crista cada vez mais empinada.

Rompido o manto verde nos encontramos num pequeno cume secundário que se alonga em crista na direção ao maciço principal ainda bem distante. Dali pode-se ver a Pedra da Tartaruga, outras cumeadas e os campos de altitude chegando até a beirada do abismo de onde saltam belíssimas cachoeiras que somem por entre a mata densa. Uma espessa e maciça massa de nuvens preenchem completamente todo o imenso vale abaixo, circulava o Pedra Branca do Araraquara e se perdia no horizonte cobrindo todo o oceano. Ao longe o Araçatuba se mostra azulado e o sol próximo do seu ápice nos castigava inclemente.

A trilha segue a cumeada e desce para a floresta ainda agarrada a crista com as encostas despencando para os dois lados. Extensos canteiros de bromélias por entre arbustos retorcidos. Calor sufocante e ar parado. O suor salgado escorre fartamente pelo rosto, ensopa a camisa e a mochila pesa duzentos quilos. O passo arrastado segue a crista até bater na encosta, toma a direita e encontra uma imensa pedra que protege um mocó. Ali, a sombra da pedra se acumula algum lixo, um resto de fogueira e atesta o amor do Fábio pela Cris. Uma paixão riscada para a eternidade. Contornando a pedreira, o caminho segue cada vez mais empinado e sufocante. A secura na garganta nos tortura e água é nosso único pensamento. Um desejo que só cresce e fazemos nossas primeiras paradas para respirar já bem acima da cota 1000 e foram muitas antes da 1200.

Fora do mato encontramos os campos de altitude e seguimos a direita uns poucos metros, pela borda do precipício até cruzar uma pequena elevação e ver um caudaloso riacho correndo tranqüilo no vale, pouco abaixo. Mais alguns passos e mergulhamos com gosto naquela água limpa, gelada e abundante. É uma verdadeira dádiva um riacho deste porte correr nesta altitude para despencar pela borda do paredão.

O sol inclemente e o ar sufocante nos castigam nos campos enquanto subíamos para a Pedra da Tartaruga e os passos ficaram lentos. Devagar nos aproximamos da sombra oferecida pela única proteção a vista em todo o horizonte. Mocozados naquele abrigo pude enfim devorar o almoço, um sanduíche com queijo, salame e mel.

Do alto daquela pedra a vista é impagável. A leste os campos mergulham no abismo até um mar de nuvens que se estende até o horizonte. Ao norte o Araçatuba todo azul depois de uma infinita sucessão morros e o oeste todo coberto de campos salpicados com pedras desnudas e muitas elevações cercadas por profundos vales verdes escondendo riachos paradizíacos. O contraste do verde claro da grama com as rochas negras e o verde escuro da mata ciliar no fundo dos vales é indescritível. A paisagem só encontra panorama similar nos Andes onde o branco do gelo foi agradavelmente substituído pelo verde do gramado. O velho Campo dos Ambrósios se revela ao nosso olhar contra um horizonte de azul imaculado.

Muito distante, podíamos ver a ponta da antena no cume do Quiriri encoberto por uma elevação. Lentamente recomeçamos a caminhada de contorno a este morro sob o sol escaldante e aos poucos nossa resistência foi sendo vencida pelo calor e cansaço. O Elcio desce a encosta e tenta penetrar na mata ciliar a procura de água, mas depois de vencer a quiçaça mais infernal só encontra o ruído da água correndo nos subterrâneos da montanha. Passo a passo e suando as bicas, fomos vencendo as encostas com todo o peso do mundo as costas. Fazíamos um longo contorno ao norte para desviar dos morros e vales que nos separavam do objetivo imediato. Tudo na imensidão de um campo sem fim, sem trilhas e com escassos pontos de referência para nós que cruzávamos pela primeira vez esta região.

Contornada outra elevação nos vimos forçados a atravessar um pequeno banhado com poças de água parada e na encosta seguinte finalmente nos encontramos novamente com água límpida e fresca correndo sobre a turfa preta. Água com um leve gosto de terra que debaixo daquele calor infernal, desceu pela garganta com imenso prazer. Nem champanhe seria mais bem-vinda naquele momento. Bebemos, lavamos o rosto e os braços suados, reabastecemos os cantis e revivemos. O clima de pessimismo sumiu na hora e a vontade de seguir em frente, varar a campina voltou e todos os momentos de sede terrível que acabáramos de viver desapareceram por encanto. Como se nunca houvessem existido, as pernas nem mais doíam e o sol não mais queimava, estávamos de novo na trilha.

Algumas elevações adiante contornadas em graciosas curvas descritas pelos campos e ficamos frente a um profundo vale com o Quiriri se erguendo em frente e suas duas casamatas no topo. Descemos até o fundo e cruzamos uma velha cerca de arame farpado para encarar uma encosta muito inclinada e coberta de capim com pequenos afloramentos de rocha. No Cume, duas casamatas de alvenaria com teto de concreto e duas altas antenas, uma delas tombada sobre uma das edificações atesta a fúria do vento que freqüentemente castiga esta região. Do cume parte o que restou de uma estrada que descreve muitas curvas no planalto e contorna um lago azul até se perder na distância. E por ali em algum lugar na campina passa o centenário Caminho dos Ambrósios que em tempos remotos fazia a ligação entre Curitiba e o porto de São Francisco do Sul.

O sol já baixava no horizonte e sentados na plataforma da antena fizemos um último lanche antes de prosseguir rumo ao Monte Crista. Comi outro sanduíche com queijo, salame e mel regado a sucão de uva. Descendo a encosta senti uma terrível dor de dente, tão forte quanto inesperada. Os pontaços consecutivos se irradiam pela boca e pela cabeça e em poucos minutos não conseguia mais nem identificar que dente doía. Tudo pulsava dolorosamente dentro da boca e após minucioso exame o Elcio identificou um pequeno buraco no dente suspeito, tomei um comprimido de Doril e começamos a avaliar nossas alternativas, pois tínhamos apenas mais uma hora de luz antes do anoitecer.

O Elcio havia passado pela mesma experiência na Bolívia e na comparação dos sintomas garantiu tratar-se de canal. A coisa repentinamente ficou muito feia e cogitamos seguir pela estrada na tentativa de encontrar ajuda na sede da fazenda Quiriri, mas havia a possibilidade de não encontrar ninguém por lá ou apenas os caseiros. Precisava urgente de um automóvel e uma farmácia. O mais seguro para mim era retornar imediatamente e procurar uma farmácia em Garuva, com sorte chegaria lá nas primeiras horas da madrugada.

Continua…

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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