A sonhada Travessia da Serra Grande

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Nem só ao Pico Agudo (Ybiangi, na linguagem dos índios kaingangs) é dirigida a devoção dos montanhistas pés-vermelhos. Qual de nós, ao chegar ao ponto culminante da Serra dos Agudos, não se encantou com a imponência da Serra Grande, magnífica chapada de sete quilômetros de extensão e 450 metros de altura à oeste do Rio Tibagi, no Município de Ortigueira? Todos, seguramente!

Desde que fixei meus olhos na Serra Grande pela primeira vez, imaginei uma Travessia Norte-Sul. Infelizmente, na época, faltava-me um 4×4 para alcançá-la. Em 2009, de carona com irmãos de Londrina, estive nesta Chapada. Na ocasião, batizamos as duas primeiras elevações da formação como Pico do Meio e do Portal vez que, nos mapas do IBGE, tudo era Serra Grande!

Pico do Meio e do Portal vistos da Face Sul.

Sem dúvida, este vasto setor dos Agudos é a última fronteira para o Montanhismo Norte Paranaense. Cerca de um terço do maciço principal (porção sul) é formada por campos e pastagens. Seu cume é um diminuto planalto, com nascentes e um vale principal que despenca pela Face Oeste: uma empreita por este vale já está nos planos! A porção norte (cerca de dois terços da Serra) é constituída por florestas virgens e macegas espinescentes.

Campos na porção Sul da Serra Grande.


Pois bem. Foram anos estudando, mapeando e sonhando com esta Travessia. Finalmente, após muitas desistências (e adiamentos) conseguimos reunir uma equipe para tentar o feito: Meu cunhado Lucas Zerbinati, Agner Grecco, Raphael Marques (Gambiarra) e meu filho Thomas Ben Farina.

Pelos nossos planos, teríamos que abrir aproximadamente cinco quilômetros de trilhas por um terreno e vegetação inexplorados. Já os onze quilômetros restantes seriam percorridos por uma estradinha existente no interior do Cânion e pelos campos da Face Sul. Para aumentar a adrenalina, na véspera, tomamos uma decisão ousada: Tentaríamos realizar a Travessia de ataque!

Às cinco horas, partimos de Rolândia. Às 7h30 paramos no Bairro dos França para encontrar o Gambiarra (que veio de Curitiba), tomar um café e fazer necessidades. Chegamos ao pé da Serra perto das 9h30. Como o tempo estava curto para quem se propunha a abrir uma Travessia de ataque, decidimos subir a Serra Grande com a Defender: Nem preciso dizer que foi um tesão!

Ponto de partida na Face Sul.

Estacionamos a Land na borda do Perau, próximo a uma formação de Jerivás. Preparamos as mochilas com três litros de água por cabeça, na esperança de encontrar alguma fonte no interior do Cânion. Partimos às 10 horas percorrendo a borda do paredão e apreciando uma visão fantástica do Monte Ybiangi!

Após 2,5 quilômetros de caminhada, chegamos a um vale secundário (trata-se de um afluente do Córrego principal). Decidimos cruzá-lo rumo à Crista Leste. Ingressamos em bambuzal fodástico que recordou o Ferraria. Após alcançar a Crista, chegamos a um mirante espetacular. Logo após, para nossa surpresa, acabamos encontrando vestígios de trilha, por onde a caminhada fluiu bem.

Mirante frontal para o Ybiangi.

Seguimos por essa trilha aproximadamente 800 metros até chegar a uma antiga cerca divisória. Dali pra frente dá-lhe facão, suor, lianas e espinhos: os sinais de presença humana desapareceram completamente! Um quilômetro adiante alcançamos outro bambuzal, ainda mais fechado. Após rápida consulta ao Wikiloc decidimos contorná-lo, corrigindo a rota no sentido nordeste.

Um parêntesis: Como o Wikiloc estava consumindo a bateria do Gambiarra (ele esquecera a recarga) consultas ao aplicativo eram restritas.

Vencido o bambuzal, seguimos sentido Norte, onde encontramos outro vale. Batizamos a depressão como “Vale das Lágrimas” vez que, nesta altura do campeonato, além do desgaste físico, ficou claro que a Travessia seria concluída a noite. Provavelmente no Vale há uma nascente, porém não investigamos…

Abrindo a trilha pela Mata Virgem.


Vencida a sela, começamos a subir a antepenúltima elevação da Serra Grande. Desviamos a trilha no sentido noroeste em direção ao cume e eis que estourou uma bolha em meu calcanhar. Batizamos esta elevação (1.054 metros s.n.m.) como “Calcanhar”.  Fizemos uma pausa e eu aproveitei a hora do lanche para descalçar as botas e colar uns esparadrapos em meu combalido panázio…

Últimas elevações da Face Norte vistas do “Calcanhar”

Relativamente recompostos, corrigimos a rota no sentido nordeste e tivemos a primeira visão de nosso objetivo: As duas elevações finais da Serra! Com a Taça praticamente nas mãos, o moral da equipe foi às alturas. Encaramos uma baita pirambeira e logo começamos a subir o penúltimo cume. Batizamos esta elevação (1.036 metros s.n.m.) de Guarani, em homenagem ao Grupo Escoteiro de Rolândia (46PR), fundado em 1967, afinal foi lá que nossa história começou!

Quiçaça entre os Picos Guarani e Caviúna.

Do alto do Guarani, avistamos de perto nosso último objetivo: Um gracioso pináculo coberto por gramíneas amareladas. O cansaço desapareceu, cruzamos a sela e começamos a subir o monte. A encosta da elevação é um emaranhado de samambaias (Pteridium arachnoideum) que dificultou o nosso avanço.

Thomas, Lucas e Gambiarra assinando o Livro.

Às 14h50 chegamos ao cume da Face Norte (1.040 metros s.n.m.). Dali se têm um 360º magnífico da Serra Grande, Portal, Morro do Taff, Cânion do Tibagi, Vale do Esperança, Serra do Gato, Serra Chata, Ybiangi, Serra do Arreio, Pedra Branca, Serra do Cadeado. Batizamos o Pico de “Caviúna” em referência à esta árvore nativa e ao nome de Rolândia durante a 2ª Guerra Mundial (nomes de origem alemã foram proibidos por Vargas durante o conflito).

Serra Chata e Pico Agudo vistos do Caviúna (Face Norte).

Montamos um pato para sinalizar e proteger o tubo do Livro de Cume. Mapeamos a trilha pelo Wikiloc até este ponto. Gostaríamos de ter ficado mais tempo apreciando o visual inédito e transcendental da Serra, porém ainda tínhamos 10 km pela frente… Iniciamos a descida pela Face Leste (uma baita pirambeira e quiçaça), mas nada detinha nosso ânimo!

Descida pela Face Leste.

Chegamos à estradinha existente no interior do Cânion às 17h00. Sujos, rasgados, exaustos, quebrados, com fome e sede! Descansamos um pouco e seguimos. Após uma hora de caminhada chegamos às ruínas da antiga casa do Seu Jorge “Curiango”. Infelizmente, não havia água por ali, mas as doces laranjeiras do pomar estavam carregadas: Foi nossa salvação! Um pouco mais adiante atingimos a gigantesca Figueira Branca: uma das maiores árvores que já vi. Pausa para fotos e seguimos, pois o sol já havia se posto atrás da chapada…

A centenária Figueira Branca no interior do Cânion!

Neste momento, o ânimo da moçada começou a baixar. Nossas olheiras e lábios já anunciavam um princípio de desidratação. Devoramos as últimas laranjas do “Curiango” e tocamos em frente. Caminhamos mais um quilômetro quando encontramos uma minguante fonte que descia da Serra: Alívio geral!

Iniciamos a subida da Serra Grande perto das 18h30. A temperatura despencou rapidamente. Hidratados, o perrengue final foi suportável. Chegamos às viaturas perto das 19h30, totalizando 9h30 de jornada. A noite estava perfeita: Montamos o acampamento, acendemos a churrasqueira, fumamos um cachimbo e tomamos várias cervejas, afinal nem só de perrengue vive um Montanhista!!!

Mágico alvorecer após a realização de um sonho!

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Sobre o autor

Advogado graduado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), empresário e corretor de imóveis em Rolândia-PR. Casado, três filhos. Conselheiro Ambiental por dez anos e Vereador (2001-2004), autor do Código Ambiental do Município de Rolândia. Integrou o Grupo Escoteiro Guarani (46-PR) por mais de 10 anos; Montanhista e Jardineiro nas horas vagas. Apaixonado pelos Agudos do Tibagi, no Norte do Paraná.

12 Comentários

  1. Geraldo Barfknecht em

    Excelente, amigo Paulo, pois é brilhante montanhista, desbravador, conquistador de varias montanhas, cumes, subcume, antecimos….,principalmente na outra “parte do Paraná”, pouco comentada e não menos interessante, o vasto interior. Assim, permita-me, então saudá-lo como um de nosso grandes orgulhos no montanhismo paranaense, exercendo uma arte cada vez mais rara, a da comunhão de conhecimentos orográficos, de jornadas sem hedonismos, real, direta e emocionante, pela força, bravura, pela sensação provocada, que vemos sempre em seus belos textos, que contagiam corações e almas de todas as dimensões. Que siga, brindando-nos com belíssimas fotos, lúdicos relatos, que nos levam junto sempre. Como você nos deixa “mal acostumados”, já estamos ansiosos para a próxima. Bravíssimo, aplausos, a equipe do Paulo Farina! Com sua licença, vou ler mais 2 x, hoje.

    Um mísero detalhe, YBIANGI é a montanha com nome mais antigo na cartografia sul-brasileira, possivelmente de grande parte do Centro-Oeste e uma considerável de Sudeste, pelos olhos dos jesuítas cartógrafos da Coroa Espanhola, baseados em Assunção, Paraguay, tendo atualmente 388 anos e Agudos(termo luso-brasileiro, que aparece no seculo XVIII, temos balaios na Pindorama. Ybiangi, Ybiãji, Ibiãji…do Guarani Antigo, um. Não sabemos ainda, Paulo, pode ter-se perdido, como os Kaingang, Xokleng e Xeta o chamavam, mas sempre em buscas. Então, penso que temos obrigação de enaltecer, resgatar, usar essa primazia, antiguidade toponímica, sendo que o nome do estado, nome da capital, dos rios principais também são do Guarani Antigo (ou se preferirem do Tronco Tupi, Família Linguística Tupiguarani, que derivaram na Língua Geral Brasílica-LGB). Se alguem lembrou da Tromba de Guarambi e outras grafias, a toponímia na cartografia é 21 anos mais nova.

    • Paulo Augusto Farina em

      Grande Mestre Geraldo! Muito obrigado pelas palavras e ensinamentos constantes! Recompensa e incentivo maiores, desconheço! Um forte e fraterno abraço de Rolândia!

    • Paulo Augusto Farina em

      Muito obrigado, meu Caro! A sensação é indescritível… Trata-se da realização de um antigo sonho que superou todas as nossas expectativas! Fraterno Abraço de Rolândia!

  2. Parabéns !!! E uma gentileza. Mostrar essa beleza. Lugares lindos e compartilhar e mencionar nosso município , ortigueira e uma honra . Muito irado sensacional

  3. DIANE FORNACIARI em

    Olá Paulo! Vi o cadastro da trilha no Wikloc! Gostaria muito de fazê-la. Me diz, o local onde deixaram os carros, é uma propriedade particular?
    Se puder me add no whatsapp, gostaria de conhecer esse lugar, mas estou com algumas inseguranças ainda.
    (43) 99958-9602.

  4. Paulo Augusto Farina em

    Olá, Diane! A propriedade foi adquirida pela COPEL e, segundo as últimas informações, não há restrições de acesso (ou pedágio) para a prática de trekking. Vc pode pode deixar o carro na base da Montanha ou, se tiver um 4×4, pode acessar o platô da Face Sul. A Travessia é belíssima, com direito a muitos ângulos inéditos do Ybiangi, Cânion do Rio Tibagi e das Serras do entorno. Cerca de 5 km da Trilha são percorridos na mata virgem, repleta de espécies endêmicas, o que torna a caminhada uma experiência ainda mais interessante! Estarei lhe adicionando no WhatsApp para conversarmos melhor a respeito… Abraços!

  5. Gratidão pelo relato e inspiração.
    Nesse final de semana 19/09/2021 realizamos a tão aguardada travessia. Tivemos uma conexão com essa montanha desde a primeira vez que pisamos lá em 2019, de lá pra cá foram várias vezes passando noites agradáveis com a sua imensidão e amadurecendo a idéia da travessia que se concretizou nesse fds. Um agradecimento em especial ao Osvaldo e sua Esposa, casal aventureiro que conhecemos lá em cima e que por duas vezes já fizeram a travessia e marcaram a trilha.

    @leandromazur
    @gleice_leal
    @gentedetrilha

    • Paulo Augusto Farina em

      Grande Leandro! Parabéns pela empreitada e muito obrigado por compartilhar suas impressões sobre a Travessia! Fraterno abraço!

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