Consolidando a Travessia da Serra Grande de Ortigueira: Do Caviúna ao Portal!

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Se engana redondamente quem pensa que o montanhismo norte paranaense está restrito ao Ybiangi, popularmente conhecido como “Pico Agudo de Sapopema”. A realidade é que o conjunto de montanhas mais extenso e significativo dos Agudos do Tibagi está do lado ocidental do Cânion, no Município de Ortigueira.

Equipe “Espírito Livre Montanhismo” no Portal.

A Serra Grande dos dias atuais me recorda o Ybiangi de 16 anos atrás: Agreste e de difícil acesso, mas onde o puro montanhismo pode ser vivenciado plenamente. Até 2019 e 2020 (ocasião em que demos uma guinada em nossos trabalhos) ainda haviam cumes e sub-cumes desconhecidos ou esquecidos naquelas paragens.

Os trabalhos desenvolvidos por nossa equipe neste setor vêm sendo, paulatinamente, registrados em Alta Montanha desde então. Neste ano de 2023, traçamos como objetivo principal consolidar a Travessia desta cordilheira conforme detalhado em nosso último relato intitulado “Morro Caviúna pela Crista Norte da Serra Grande”.

Travessia da Serra Grande vista do Ybiangi por Marcelo Knieling.

Pois bem. Dada a magnitude do trabalho a ser desempenhado concluímos que precisaríamos de “mão de obra” e, sem demora, passamos a explicar a proposta em um grupo de whatsapp que reúne alguns montanhistas de Rolândia. Imediatamente destemidos candidatos surgiram e outros foram convocados.

Nosso plano logístico foi o seguinte: Dia 1: Encontro na sela entre a Serra Grande e o Morro do Meio; Embarque da equipe (em uma das caminhonetes) com destino ao início da trilha no Caviúna; Travessia do maciço principal e acampamento na sela. Dia 2: Reabertura da trilha da Crista Norte do Morro do Meio, passando pelo Livro de Cume, Marco Geodésico do IBGE (1956) e descida pela Face Sul; Ascensão ao Pico do Portal pela Face Norte, descida pela Leste e retorno ao acampamento.

Eis que no dia 20 de Maio, às 3:30h da matina, partiram de Rolândia: Paulo Augusto Farina, Lucas Zerbinati, Thomas Ben Farina, Luciano Aires (Marano), André Liberatti Baço (But), João Gabriel Rocha, Felipe Baudraz Broietti, Raphael Boato, Ítalo Conceição, Marcus Mortari e Juliano Peixoto. De Curitiba vieram: Raphael Marques (Gambiarra) que participou da abertura da trilha da Face Sul ao Caviúna em 2020, Marcos Kanashiro e a cadela Pipoca.

A Cadela Pipoca.

A viagem transcorreu bem e às 8h estávamos em nosso destino. Os comparsas de Curitiba chegaram com meia hora de atraso devido a um caminhão de toras atolado na estrada. Após um breve bate papo, mudamos as tralhas para as outras viaturas e partimos com 13 malucos empinhocados na Ranger do desapegado Gambiarra pelas estradas off-road da Serra Grande…

Com todo este peso, levamos 1h30 para chegar ao início da Trilha do Caviúna. Tirando um galho de unha de gato que acertou a cara do Boato (provocando sangramento e vários arranhões) a viagem foi um sucesso. Iniciamos a ascensão do Caviúna às 10h da manhã, pela trilha recente, batida e super evidente.

O pessoal achou a inclinação do morro exigente e, pelo jeito, a cadela do Gambiarra também: Em dado momento ela se desprendeu da equipe… Como julgamos que ela logo voltaria, seguimos até a Pedra do Urubu e ficamos por ali apreciando a paisagem, tirando umas chapas e assobiando para a cachorra desertora…

Equipe “tratorando” as trilhas da Travessia.

Às 11h seguimos para o cume. Fizemos uma pausa rápida para explicar à Equipe que o trabalho duro começaria ali. Seriam cerca de 4km reabrindo trilhas por florestas, bambuzais e samambaias até chegar à única fonte de água da Travessia (uma nascente que antecede os campos e jardins de pedra da Face Sul).

Assumi a dianteira com Gambiarra na retaguarda, enquanto Lucão e Thomas faziam o fitamento da trilha. Partimos enfrentando um samambaial do cacete, também pudera: Em 3 anos, somente 3 equipes repetiram a trilha e a última foi há 87 semanas! Após um pequeno declive, chegamos à crista de ligação com os morros seguintes. Que lugar sensacional: Paredões dos dois lados, com janelas fantásticas e uma vegetação que mistura exemplares de Cerrado com Floresta Estacional…

Um pouco mais à frente, encontramos uma fita azul: Tratava-se das marcações feitas por nosso Irmão Osvaldo Francisco Alves, um entusiasta da Serra Grande e sempre o primeiro a repetir todas as trilhas que abrimos por lá. Como em Maio de 2020, apenas registramos a trilha no Wikiloc, Osvaldo foi, pacientemente e por três ocasiões, fitando a trilha até chegar ao Caviúna em Novembro de 2020.

Uma das inúmeras janelas da Trilha.

Passamos pela crista topográfica do Guarani e chegamos ao samambaial que antecede o Calcanhar… Já se aproximava das 14h. Gambiarra estava visivelmente tenso por causa da Pipoca. Ponderei que estávamos fazendo o melhor possível. Paramos para comer e amolar os facões e encaramos mais um samambaial do balacobaco!

Vencido mais este obstáculo a caminhada fluiu melhor pelo terreno rochoso das cercanias do Calcanhar. Nas samambaias que antecedem este sub-cume perdemos de vista as fitas azuis do Osvaldo e seguimos reabrindo a trilha pela crista oriental da Serra Grande agora enfrentando bambus e lianas por uma floresta mais úmida e luxuriante…

Lucas, Gambiarra, eu e Marano em um dos Mirantes.

Seguimos os próximos 3km pela mata virgem, em suave ascensão (interrompida por um nivelamento que se transformou em um diminuto charco) até alcançarmos um sub-cume de 1.174 m. s.n.m. e, nas proximidades, a belíssima janela frontal para o Ybiangi para a qual, tanto nossa trilha de 2020 (agora fitada em amarelo) quanto as fitas azuis do Osvaldo conduzem sem qualquer imprecisão.

Thomas, fazendo o fitamento da Travessia.

Como a partir desse ponto a trilha está mais batida (provavelmente mais equipes chegaram até ali) o trabalho com o facão foi mais suave. Às 16h chegamos à fonte para o deleite e reabastecimento de todos. Gambiarra e Lucão (imbuídos do elevado propósito de resgatar a Pipoca) desceram trotando para o antigo carreador existente no fundo de vale do platô da Serra…

Tentei argumentar que a distância pela borda dos paredões (um dos pontos altos da Travessia) era a mesma que pelo interior do vale (sem visual algum), mas ambos, movidos pela tensão, mal prestaram atenção aos meus argumentos. Por esta razão divulgo, a quem interessar possa, o Tracklog da Travessia registrado pelo But.

Na sequência, ressaltei ao restante da Equipe que me acompanhava que, a partir dali, era só relaxar e gozar ao máximo o visual transcendental do Cânion do Tibagi à nossa esquerda. Poucas centenas de metros adiante atravessamos o surreal jardim de pedras, habitat de Dyckias rupestres e outras bromélias: um cenário que nos remete às paisagens dos Campos Gerais do Paraná.

O Jardim de Pedras…

Chegamos ao estacionamento no fim da tarde e montamos o acampamento. Em seguida, acendemos a churrasqueira. No cair da noite, o Marano avistou faróis no fundo do Cânion. Concluí que a cadela fora resgatada e os dois (mais animados) resolveram encarar os antigos carreadores que faziam a ligação entre o sítio do “Seu Jorge Curiango” com o do Ney (em cujas ruínas nos encontrávamos)…

Com a cadela resgatada (estava dormindo perto da Ranger) e a Travessia ⅔ reaberta passamos aos festejos com grande fartura de carne e cerveja gelada. A confraternização seguiu sob o céu estrelado e espirais da Via Láctea até perto da meia noite. Dormimos bem e acordamos perto das 7h. Thomas amanheceu gripado e Baudraz com uma puta dor no joelho. Temi pelo sucesso da empreitada…

Provavelmente em razão destes fatores, o Lucão propôs que fizéssemos um bate e volta no Meio (pelas matas da Face Oeste) e um bate e volta no Portal. Ponderei que tal medida era ilógica, comprometeria o traçado da Travessia e eliminaria janelas deslumbrantes de nossa trilha. Felizmente, ao final dos debates, a Equipe (e o próprio Lucão) me deram um voto de confiança com o qual fiquei extremamente agradecido, aliviado e disposto a não decepcionar!

Visual da Crista Norte do Pico do Meio.

Retomamos a caminhada (sem deserções) às 9h. Pouco depois, ingressamos na Crista Norte do Morro do Meio. Apesar de íngreme, a abertura da trilha pela floresta transcorreu bem até chegarmos à crista superior da Montanha, ambiente onde imperam formações cerradas de samambaias, arbustos espinescentes e bromélias. Neste momento, entreguei com o maior prazer a liderança da coluna ao Gambiarra e fui para o fim da fila, desfrutando da verdadeira “avenida” que os comparsas abriam à frente…

Como previsto, o esforço foi recompensado por visuais belíssimos da Serra Grande, Ybiangi, Serra Chata e do mar de nuvens no fundo do Vale… Às 11h, chegamos ao tubo de PVC que instalamos em 2019. Em 2020, coloquei um plástico na boca do tubo antes de fechá-lo (técnica que meu avô usava para conservar a umidade de seu fumo de corda no interior de potes) e, para nossa alegria, a técnica funcionou! Apesar de fechado há 2 anos, o caderno conservou nossos registros e o das equipes de Tamarana e Fora da Tribo. Na sequência, reabrimos a trilha até o Marco Geodésico do IBGE de 1956, reencontrado por nossa Equipe em 2020.

Livro de Cume do Morro do Meio.

Neste momento, a equipe decidiu me reconduzir à liderança para a descida da Face Sul vez que, novamente, tínhamos pela frente um samambaial da pega.  Após cerca de 600m abrindo passagem por este verdadeiro inferno vegetal (seguindo os pedidos do Lucão) decidi mudar o rumo de 165° para 180°. Tal direção nos retirou da crista quiçacenta da Montanha e nos levou a uma grota íngreme, úmida, com  vegetação luxuriante e belíssimos exemplares de xaxins ancestrais…

Grota dos Xaxins, na Face Sul do Morro do Meio.

Seguimos pelo interior da grota extasiados com a beleza da floresta até chegar ao antigo carreador que contorna a Montanha na cota 940. Este caminho segue nivelado, contornando o Portal e baixando por aproximadamente 2,8 km até uma propriedade na margem do Tibagi (cota 500). Sem dúvida, trata-se de um ponto de partida lógico para quem vem do Sul, já que o acesso se dá pelo Distrito de Natingui.

A ascensão ao Portal pela Face Norte é fácil e os visuais, extraordinários. Descemos pela Face Leste, em um terreno mais íngreme e com uma vegetação mais fechada até finalizarmos em um cocho existente na margem do caminho mencionado no parágrafo anterior. A comemoração foi geral! Fechamos a Travessia Norte-Sul da Serra Grande, contabilizando 16,17 km de distância e 1.110 m de desnível positivo. Agora, era só caminhar mais 4km de volta ao acampamento. Sem dúvida, esta Travessia já nasce clássica e digna de figurar entre as mais belas do Paraná! Registro, por fim, meu eterno agradecimento a cada um dos Irmãos de Montanha que confiaram neste Projeto.

Ybiangi visto da Serra Grande.

 

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Sobre o autor

Advogado graduado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), empresário e corretor de imóveis em Rolândia-PR. Casado, três filhos. Conselheiro Ambiental por dez anos e Vereador (2001-2004), autor do Código Ambiental do Município de Rolândia. Integrou o Grupo Escoteiro Guarani (46-PR) por mais de 10 anos; Montanhista e Jardineiro nas horas vagas. Apaixonado pelos Agudos do Tibagi, no Norte do Paraná.

13 Comentários

  1. Marcelo Knieling em

    Shoooowwwww
    Parabéns Farina e equipe !!
    Uma travessia pouco explorada na Serra dos Agudos, mas que tem tudo pra se tornar uma clássica do Estado do Paraná.

  2. Grande Marcelo Knieling, meu parceiro na Alpha-Ômega! Muito obrigado pelas palavras e pela panorâmica sensacional da Travessia: Sem dúvida, será um divisor de águas para o Montanhismo nos Agudos do Tibagi. Fraterno Abraço de Rolândia!

  3. Juliano peixoto em

    Parabéns Farina, meu muito obrigado pela oportunidade concedida a mim, momentos sensacionais vividos nessa travessia é óbvio Tmj nas mais loucas oportunidades que virão, e como já dizia no qual tenho tatuado em mim SÓ OS LOUCOS VIVEM 👊🏾🙅🏽‍♂️

  4. Fantástico e estimulador.Maravilhosa iniciativa que conduz a dispersāo montanheira para o Norte do Estado .Parabéns ao grupo

    • Grande Mestre Vitamina! Muito grato pelas palavras e incentivo de sempre! Deveras, a intenção foi justamente esta: Proporcionar uma nova fronteira para o Montanhismo no Norte do Paraná! Fraterno Abraço de Rolândia!

  5. Grande Paulo Farina e destemida equipe!
    Parabéns pela empreitada Imagino o trabalho para consolidar essa travessia no fio do facão. Quando percorremos essa serra em boa parte da sua extensão, em 2013 e depois novamente (por trajeto diverso) em 2015, as dificuldades – além da vegetação eram a escassez de água, o gado e as hordas de carrapatos que por ele eram atraídos. Com a abertura de uma rota definitiva e agora sinalizada, fica agora a curiosidade de ver como ficou o belo trabalho de consolidação. Grande abraço!

    • Grande Getúlio: A Travessia da Serra Grande é a fronteira lógica e natural para o Montanhismo Norte Paranaense. Foi um trabalho colossal, realizado em apenas um final de semana por uma equipe valente (excluída a abertura da nova Trilha do Caviúna pela Crista Norte da Serra Grande, semanas antes). A Travessia ficou linda, percorre vegetação variada e fornece diversos ângulos desta que é uma das paisagens mais belas do Paraná! Deveras, só há um ponto de água na Travessia o que demanda planejamento. Entretanto, para quem vem do Sul (Curitiba) há sempre a opção belíssima de retornar pelos antigos carreadores do interior do Cânion e (dependendo da estiagem) há mais pontos de água nesta região… Tá na hora de voltar para conferir os novos ângulos deslumbrantes dos Agudos do Tibagi! Fraterno Abraço de Rolândia!

  6. Rodolfo Ruthes Corrêa em

    Há tempos eu planejava conquistar o Portal e o Pico do Meio. Após ler o relato do Farina fui pra cota 500 a beira do rio Tibagi e realizei esses objetivos sendo o primeiro a chegar ao cume do Pico do Meio pela face Sul. Tentei então completar a travessia mas faltavam os três últimos picos e não tinha tempo hábil pois o barqueiro da região não faz a travessia do rio a noite. Voltei FF, frustrado e feliz, mas agora com um novo objetivo completar essa travessia pelas duas faces, a trilha está muito bem marcada, mas não é para amadores, um bom equipamento, experiência em navegação, logística e planejamento, são essenciais. Agradeço a equipe de Rolândia e ao Paulo Farina pelo belo trabalho prestado ao Montanhismo pé vermelho.

    • Grande Rodolfo: Como vc bem disse o périplo que esta Travessia representa é muito maior que o Ybiangi dos dias atuais… Sem dúvida, a falta de desafios maiores era uma carência do Montanhismo Norte Paranaense! Ainda há algumas melhorias a serem empreendidas em prol da conservação dos cadernos de cume e sinalização das trilhas (principalmente nas entradas da Face Leste do Portal, Norte do Pico do Meio e da Floresta do Maciço Principal) que, com a somatória de nossos esforços, serão oportunamente realizadas. Fico extremamente feliz com seu feedback e agradecido por compartilhar suas impressões conosco. Certamente, elas serão úteis aos Irmãos de Montanha durante o planejamento de suas empreitadas. Por fim, registro que a logística de vcs (que vêm de Sapopema) é sensacional: Cruza-se o Rio Tibagi para realizar a Travessia no sentido Sul-Norte (retornando pelos antigos carreadores no fundo do Cânion) o que aumentará consideravelmente a distância e altimetria. Fraterno Abraço de Rolândia!

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