Paranapiacaba em Dois Tempos – 01

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Existem pessoas q gostam de Mozart, outras q curtem Iron Maiden. Algumas apreciam ambos. Há quem opte por boteco a restaurante, assim como gostar mais de cinema a teatro. Enfim, o pto é q há gosto genuíno pra td, e de forma ampla podemos estender o conceito tb ao montanhismo. Se há quem curta trilhas fáceis e batidas, da mesma forma há quem se veja inclinado a perrengues de dificuldade maior, menos conhecidos. Ou ambos até. A Serra de Paranapiacaba preenche estes dois requisitos a contento, seja pela “Trilha do Vale do Rio Mogi“ como pela subida ao Pico do Itaguacira, sendo aqui ilustrados por dois momentos distintos, quase consecutivos. Dois tempos q alternam vales profundos e picos apontando pro céu nesta bela e pitoresca região serrana próxima à urbe paulistana.


A tradicional “Trilha do Vale do Mogi” é a materialização de picada sussa e isenta de qq problema de navegação. Tb conhecida como ” Tupiniquins”, “Raiz da Serra”, “Guaianazes” e “Piacanguera”, a vereda desce o planalto ate o fundo do Vale do Rio Mogi, pra depois serpentear rumo Cubatão, já na baixada. Como minha veia perrengueira continua intocada, sempre dei meu “muito obrigado” a qq tentativa de aliciamento a tornar a (re)fazê-la. Até o sábado passado. O comprometimento de levar uma amiga “desenferrujar o esqueleto” nalgum bate-volta fácil na região imediatamente apontou como à “Prainha” do Rio Mogi como opção ideal, através da trilha do mesmo nome. E pelo nível de facilidade, naturalmente haveria possibilidade de encontrar mais gente por lá. Dito e feito. Durante a semana soubera q outra amiga, a Vivi, estaria tb por essas bandas levando conhecidos menos condicionados. Legal, era a deixa pra trilhar descompromissadamente e quiçá esbarrar com velhos amigos. O mundo trekkeiro é bem pequeno mesmo.

Saltamos do trem em Rio Gde da Serra as 9hrs, eu e a Renata, e imediatamente encostamos na padoca Barcelona, tradicional pto de encontro de andarilhos, onde tomamos nosso rápido desjejum com destaque prum delicioso pão-na-chapa. Na sequencia nos dirigimos ao pto da integração com o bus, onde uma fila enorme de orientais e pivetada nos aguardava. Acotovelados num latão apinhado de gente, após rápida e trepidante viagem descemos na vila de Paranapiacaba antes das 10hrs, e sem pestanejar nos dirigimos ao inicio da picada. Pelo horário bem avançado via pouca probabilidade de encontrar a Vivi, pois lembro da dita ter avisado q zarparia por volta de 1hr antes, impreterivelmente. Mas eis quem topamos ao cruzar o cemitério e o estacionamento? Vivi e sua trupe, composta pelo Fabio (de braço quebrado), Cris e Emeka, q aguardavam mais 3 rapazes, Mario, Caio e Jorge, q coincidentemente estavam no mesmo bus nosso, atrasados. Coincidencia ou destino? Não sei, o fato é q dali zarpamos tds juntos, pois nosso destino era o mesmo.

O dia estava radiante. Com um céu isento de nuvens e um sol martelando a cachola rumamos pra picada, mas não sem antes bater algumas fotos no Mirante, com ampla vista do verdejante vale cujas encostas percorreríamos ate dar no rio. E Cubatão, ao longe, se revela ao nosso olhar contra um horizonte de azul imaculado. Tomamos a trilha e mergulhamos no frescor da mata, descendo a encosta esquerda da serra em suave declividade, passando com cautela alguns trechos escorregadios devido ao limo depositado na trilha ou mais estreitos da picada, com sinais evidentes de deslizamento. As frestas na mata permitem vislumbres de uma linha férrea cortando a encosta oposta, onde um som seco e metálico anuncia a passagem de um trem.

Não tardou e caímos num descampado ao sopé da 1ª torre de alta tensão, onde paramos pra sentir a brisa no rosto e clicar o visu do vale descortinado à nossa frente. Penetramos novamente na floresta densa e sombreada por grandes árvores cujas copas fecham o céu, sempre bordejando a encosta porém agora cruzando com vários córregos cortando a picada, q por sua vez alternava-se em pedras, charcos, terra, valas ou lajotas. No caminho topamos com mais uma galera descendo, em ritmo vagaroso, a quem acenamos um cordial “e ai, beleza?”. Minha amiga, apesar de estar há muito tempo sem trilhar, desceu num ritmo bem satisfatório, sem problema algum. Performance mto boa pra quem acompanhava pra ser “(re)iniciada”.

A 2ª torre, mais abaixo, é alcançada após emergirmos por entre enormes matacoes de lírios-do-brejo. Dali em diante a picada desce em largos ziguezagues costurando a encosta, sempre acompanhado a linha de alta tensão serra abaixo. Assim, chapinhando pelo brejo numa trilha q ora se alarga ou estreita, desembocamos na base da 3ª torre, onde há algum lixo e sinais de fogueira. A picada desvia forte pra esquerda e retoma a descida, aos ziguezagues, onde agora podemos ouvir o rugido de um rio correndo nalgum vale fundo à nossa esquerda. O sol da manhã está bem forte, mas o calor ainda não venceu o frescor da mata e desenvolvemos uma caminhada tranqüila pela encosta cada vez mais inclinada.

Após a 4ª torre a declividade aumenta e a picada embica por uma crista florestada praticamente em linha reta, serra abaixo, durante um tempão. Emerge brevemente entre matacoes de maria-sem-vergonhas pra depois enfiar-se outra vez na mata. A presença cada vez maior de lírios-do-brejo anuncia água nas proximidades. Dito e feito, tropeçamos no 1º riachinho do percurso, cujo marulhar ouvíamos já a algum tempo. Mas um pouco mais a frente topamos com outro afluente maior do Rio Mogi, onde paramos brevemente pra descansar sobre as lajotas de seu pedregoso leito. O calor está insuportável e não dá outra: mergulho no poço mais próximo pra me refrescar, atendendo institivamente o chamado de suas águas frias e esverdeadas.

Saltando de pedra em pedra passamos pra outra margem, onde a picada prossegue em meio à mata e praticamente nos vemos “nadando” entre voçorocas de lírios-do-brejo, afastando a vegetação q tende a ocultar a trilha. Depois o caminho se estreita e bordeja uma íngreme encosta, sempre acompanhando pelo alto o tributário supracitado. Um 3º e 4º rios despencando serra abaixo são vencidos sem dificuldade, onde pequenos córregos cortando a encosta e algumas arvores tombadas correspondem aos últimos pequenos obstáculos deste trecho de trilha. Um aparelhinho do Mario revelava q ate ali havíamos completado 8km em 10mil passos (!?).Verdade ou não, o certo era q o desnível desde la em cima havia sido de quase 750m vencidos!

Finalmente, as 13hrs, desembocamos às margens da “Prainha” do Rio Mogi, já no fundo do vale. Perdi a conta de qtas vezes já passei por aqui mas sempre me maravilho com este lugar, q fica mais cênico realçado pela iluminação deste inicio de tarde. As águas e poços de tom esverdeado-claro contrastam gritantemente com o esmeralda mais escuro da mata ao redor, q por sua vez recorta um céu azul despido de qq vestígio de nuvens. A “Toca da Onça”, uma greta formada por enormes rochas ao lado da simpática prainha fluvial, surge como eventual proteção em caso de chuva e tantas vezes já me servira com essa finalidade. O Rio Mogi, por sua vez, corre manso e sinuoso sentido Cubatao, emparedado neste trecho por altas montanhas forradas de densa vegetação. Naquele local paradisíaco, nos jogamos ao mais completo ócio sobre as lajotas e pedras do leito – q agora serviam de esteiras – com direito ate um cochilo e lanche. E com o sol próximo de seu ápice não deu outra: tchibum!

Revigorados, as 14:30 damos as costas ao Rio Mogi e iniciamos o árduo caminho da volta. Um negrume surge no céu encobrindo o alto da serra e mosquitos se fartando do nosso sangue reforçam nossa decisão de voltar. Contudo, o argumento mais contundente era o de ter tempo suficiente de vencer os quase 700m de desnível q tínhamos ainda pela frente. E assim voltamos lentamente td o caminho feito repisando nossos passos, mas após o 1º riacho (de cima pra baixo) o pessoal começa a se distanciar, justamente no trecho onde a declividade aperta.

A partir daqui a Renata começa a sentir o peso da “roubada” em q se meteu, assim como o das pirambas q se seguem consecutivamente, nas quais inúmeras paradas são necessárias pra retomada de fôlego. O calor sufocante e o ar parado faz seu suor escorrer fartamente pelo rosto, ensopa a camisa e a mochila de ataque parece pesar duzentos quilos, minando seu pique inicial aos poucos. O consumo de água aumenta e esvazia rapidamente nossas garrafas. Mas o fantasma da sede mantem o passo constante, mesmo q arrastado. Pra complicar, uma leve pontada na minha têmpora anuncia a iminência de uma enxaqueca, tão forte qto inesperada. Mas ainda assim busco manter a compostura e prossigo no meu ritmo, ignorando a dor. Pensando bem, a trilha não era tão “sussa” assim. Não a volta, pelo menos.

E lá vamos nos, empenhados em subir aos poucos a serra enqto o resto deslancha de vez na dianteira. “Devagar, porem sempre!”, é meu lema nessas horas, sem perder minha amiga de vista e atentando às bifurcações no caminho. A medida q ganhamos altitude e vencendo as torres sucessivamente, a satisfação de estar cada vez mais próximo do fim da jornada aumenta. Uma parada no primeiro córrego do caminho molha com gosto indescritivel nossa garganta seca, lava nosso rosto e revivemos. Ao mesmo tempo as brumas envolvem o alto da serra, tornando infrutífera qq tentativa de visual. Já não enxergamos Cubatão nem o litoral, apenas somos brindados por um enorme quadro opaco à nossa volta.

Um doce aroma de “dama-da-noite” paira no ar e anuncia nossa chegada ao alto da serra, as 18hrs, onde uma roda de crentes ora alguma graça alcançada próximo do Mirante. Com Paranapiacaba fazendo jus ao seu famoso “fog londrino”, nos dirigimos ao pto de bus. Provavelmente Vivi &amp, cia devem estar comemorando nalgum boteco da vila, à nossa espera, mas nosso cansaço nos impele a retornar à casa antes da hora. Eu tb precisava voltar pois minha cabeça pulsava dolorosamente. Afinal, a pernada terminou, mas não a jornada, havia ainda a longa via-sacra bus-trem-bus. Mas não sem antes uma breve parada na padoca, em Rio Gde da Serra, pra tomar somente uma cerveja gelada merecidamente. Não apenas pra simplesmente satisfazer a sede, e sim pra fechar com chave de ouro um passeio simplório e prosaico q pra quem ta pouco acostumado certamente ganha contornos de epopéia homérica, de vitoria e superação. E isso certamente sempre merece comemoração.

Continua…..

Texto e Fotos: Jorge Soto

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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