No último domingo (11/dezembro/2011) foi lançado o selo comemorativo dos 100 anos de Montanhismo no Brasil. A ação foi a primeira realização da Semana Brasileira de Montanhismo, o evento comemorativo que irá reunir montanhistas de todo país, promovendo uma série de acontecimentos na última semana de abril de 2012 no Rio de Janeiro. O evento promovido pela CBME (Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada) oficializa que a conquista do Dedo de Deus seria o marco inicial do montanhismo brasileiro.
O lançamento, no entanto, não agradou a todos, pois a FEPAM, Federação Paranaense de Montanhismo e Escalada e a FEMESC, federação de Santa Catarina, se posicionaram de maneira desfavorável à posição da CBME em afirmar que o montanhismo no Brasil tem apenas 100 anos.
De um lado existe a história da conquista do Dedo de Deus pela equipe de José Teixeira Guimarães em 1912, uma história de superação e orgulho nacional dada em uma montanha de grande beleza cênica próxima à capital da época que teve ampla repercussão. O Dedo de Deus tinha sido considerado como inescalável por uma equipe de alpinistas alemães, que tentaram em vão subir a montanha antes do grupo liderado por Teixeira, que através de muito esforço e improviso venceu as dificuldades técnicas galgando até o cume da montanha que até hoje é considerado um desafio técnico.
Existem diversos registros de ascensões a montanhas anteriores à conquista do Dedo de Deus, seja no Paraná, onde há a famosa ascensão do Olimpo, cume mais elevado da Serra do Marumbi, quanto em outros estados.
O AltaMontanha contactou figuras ilustres do montanhismo nacional, escaladores e estudiosos, para saber sua opinião sobre a polêmica e aclarar qual escalada poderia ser considerado o marco inicial do montanhismo brasileiro.
Um pouco de História:
“Não podemos fixar uma data para o começo do montanhismo no Brasil, muito menos achar a paternidade, porque nada disso aconteceu. O montanhismo brasileiro simplesmente apareceu de forma natural talvez entre os séculos XVII e XIX e evoluiu por conta dos próprios brasileiros e também dos imigrantes.” Estas são as palavras do escalador carioca Antonio Paulo Faria, retiradas de seu livro “Montanhismo brasileiro: Paixão e aventura”. Antonio Paulo, que é conquistador de uma centena de vias e escala há mais de trinta anos. Ele é enfático:
“Esta “historinha” de montanhismo como esporte para justificar paternidade tem profunda conotação política, e foi dessa forma que os franceses fizeram… E um bando de sul americanos desinformados querem fazer o mesmo.”
As afirmações de Antonio Paulo são baseadas na decisão oficial da Federação Paranaense de Montanhismo em discordar da posição da CBME em fixar a data inicial do montanhismo brasileiro a partir da conquista do Dedo de Deus, montanha de 1675 metros localizada em Teresópolis – RJ.
Para Vinicius Ribeiro, montanhista paranaense da Associação Nas Nuvens Montanhismo, a escolha do Dedo de Deus é uma arbitrariedade e as palavras de Antonio Paulo contraditórias, uma vez que ele afirma não existir um marco inicial do montanhismo, mas aprova que este seja fixado na escalada do Dedo de Deus em 1912.
Ribeiro vai além entra na questão política. Em seu blog, o “A Montanha”, ele menciona: “Particularmente, esta seleção revela a habilidade dos montanhistas cariocas em estar sempre na vanguarda política do montanhismo nacional, e que, querendo ou não, estão fazendo algo em prol da nossa atividade, como por exemplo, a Semana Brasileira de Montanhismo. Mas revela, também, a falta de perícia em tratar a questão com o resto do país e pouca humildade em aceitar uma realidade a parte da antiga capital do Império”.
O presidente da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada, o paulista Silvério Nery, se diz preocupado com os rumos que a discussão tomou, principalmente quando se refere à organização da Semana do Montanhismo no ano que vem: “Confesso que fiquei surpreso com o rumo que tomou a discussão. Pessoalmente é desestimulante que um evento criado com as melhores intenções para promover o crescimento e dar visibilidade ao montanhismo brasileiro seja questionado por conta de uma discussão sobre qual Estado do Brasil foi o pioneiro no montanhismo”.
Esta discussão toda diz respeito à conquista do cume mais alto da Serra do Marumbi, na Serra do Mar paranaense, quando Joaquim Olimpo “Carmeliano” de Miranda conquistou a montanha no dia 21 de Agosto de 1879, num evento muito bem documentado e estudado. Sabe-se hoje que a equipe de Carmeliano não era a única na montanha no dia de sua conquista e que Joaquim Antonio Coelho, também alcançou o cume do recém batizado “Olimpo” (nome dado por seu conquistador) na mesma tarde em que os pioneiros chegaram no cume da montanha, porém advindos de outra rota.
De acordo com o montanhista paranaense Julio Fiori, a primazia na atividade montanhística brasileira deveria ser definida como sendo apenas a primeira escalada esportiva em território brasileiro sugerindo que desta primeira ação resultou um movimento que se manteve constante até os dias de hoje. “O estabelecimento de um marco inicial só se justifica para determinar a fonte inicial de inspiração para o moderno montanhismo esportivo.”
Neste sentido, corrobora o experiente montanhista paranaense Henrique Schmidlin, o Vitamina, que afirma que a ascensão ao Olimpo não foi um evento isolado, mas sim um fato que foi seguido anos a fio, dando início a uma rica cultura chamada “Marumbinismo”: “Obviamente a história do montanhismo é inconteste á favor do Paraná. É aqui o berço do montanhismo esportivo, sobeja e facilmente comprovado por farta documentação e em especial ao Joaquim Olimpo que no contato com os engenheiros da ferrovía Paranagua/Curitiba lhe relataram o surgimento do novel esporte europeu: o alpinismo! Com a subida do Marumbi, Joaquim resolveu abrir esse novo esporte no Brasil e ficou guiando todas as escaladas até seu falecimento quanto foi substituído por outro guia e assim por diante”.
A escolha do marco inicial do montanhismo nacional através da conquista do Marumbi, onde há uma incontestável motivação esportiva, argumento dado pelos paranaenses, é facilmente refutada por Antonio Paulo Faria, que afirma: “Erraram profundamente os paranaenses que cismam com a historia da subida do Olimpo em 1879, sem mesmo conhecerem direito a historia nacional. O próprio Pão de Açúcar era subido por prazer (esportivo) a partir de 1838, como mostram registros, mas é quase certo que já se fazia isso antes”.
Antonio Paulo afirma que é difícil estabelecer uma ascensão pela motivação como fator para definir o que é montanhismo e o que é subir uma montanha e diz haver uma dificuldade em saber sobre escaladas mais antigas e até pré históricas: “Bem na base da Serra do Ponto (1195m), em Pernambuco, tem pinturas rupestres de milhares de anos onde foram achados também ossadas de 83 pessoas. Milhares de nativos viveram por ali durante muitas dezenas de séculos. Não seria ingenuidade de paranaenses e cariocas acreditarem que esses brasileiros primitivos não subiam a Serra do Ponto por simples prazer, para observar paisagens mais distantes?” Ele vai além e afirma:
“Certamente já se fazia, também, escaladas técnicas no Brasil antes do Dedo de Deus em 1912, o problema é que esta atividade não era organizada ou reconhecida, e a mídia da época deu enorme valor ao feito, e com razão! Entretanto, já vi caprinocultores no ES subir enormes costões descalços, com lances de III grau, para capturar cabritinhos perdidos”.
O escalador carioca André Ilha é uma das pessoas que mais contribuiu com o desenvolvimento da escalada no Brasil. O autor do “Manifesto da Escalada Natural” e conquistador de mais de 600 vias de escaladas é enfático: “é absolutamente impossível se afirmar com precisão o início do nosso esporte aqui ou em qualquer outro país e, nesse sentido, qualquer tentativa de se estabelecer uma data exata é um exercício inútil”.
“Se Montanhismo é a atividade de se subir montanhas por esporte, isto é, por razões não práticas (caça, ataque-surpresa a algum inimigo, rituais religiosos), então certamente o Montanhismo brasileiro tem bem mais do que 100 anos. Só que, por coerência, sua idade também não poderia ser fixada em 133 anos, celebrando o fato de que em 1879 Joaquim Olympio Carmeliano de Miranda e amigos subiram o ponto mais elevado da Serra do Marumbi, no Paraná; ou 167 anos, marcando a ascensão da Pedra do Sino, no atual Parque Nacional da Serra dos Órgãos, pelo botânico inglês George Gardner; ou mesmo 195 anos, já que em 1817, supostamente, uma cidadã inglesa chamada Henrietta Carsteirs teria subido o Pão de Açúcar e, alguns dias depois, afrontados, cadetes da escola militar que havia ali na Praia Vermelha teriam repetido o feito”. Diz André Ilha, que ainda enfatiza:
“No entanto, o Montanhismo, hoje, enfrenta imensos desafios para se ver mais reconhecido perante a opinião pública e as autoridades constituídas em todos os níveis de poder, de forma a podermos fazer frente, principalmente, às angustiantes questões de acesso às áreas para a prática de caminhadas e escaladas. A única saída – a qual, aliás, vem sendo trilhada com maior ou menor grau de sucesso em diversos pontos do país – é o fortalecimento das nossas entidades representativas, como clubes, federações e confederações e, com elas, buscar ocupar espaços institucionais onde apareçamos não como um bando de lunáticos, mas, sim, como esportistas conscientes, parte legítima da sociedade brasileira atual e, com isso, reivindicarmos direitos de acesso a áreas naturais públicas ou privadas onde o esporte se desenvolva, seja para escaladas, seja para caminhadas”.
Marco inicial: Quais são os melhores critérios?
O historiador do montanhismo brasileiro Rodrigo Granzotto Perón já contribuiu muito gerando seus bancos de dados sobre as expedições brasileiras na Ásia. Ele faz uma longa reflexão a seguir, com sugestões de critérios que deveriam ser usados na escolha do marco inicial do montanhismo no Brasil.
Como marco inicial do montanhismo brasileiro, temos que descartar a 1ª subida do Pão de Açúcar (1817), a 1ª ascensão da Pedra do Sino (1841), e a 1ª escalada do Monte Roraima (1884), pois essas conquistas foram feitas por estrangeiros. Eu também não colocaria a 1ª escalada do Pico das Agulhas Negras (1856), mas essa não foi uma ascensão “completa”, já que José Franklin Massena não prosseguiu até o cume verdadeiro, parando em uma antecima (o cume foi tocado pela primeira vez apenas 40 anos depois)”. Perón continua:
Também eu descartaria a 1ª subida do Pico da Bandeira (1859), pois essa foi feita a mando de D. Pedro II, e a expedição foi apenas uma decorrência do imperialismo. Restam, portanto, três datas importantes do montanhismo brasileiro, em minha opinião:
1879: 1ª subida do Marumbi – Olimpo
Essa ascensão foi importante, pois foi “a primeira equipe de montanhistas reunidas no país, tendo como finalidade essencial realizar uma escalada esportiva de montanha” (como registrado por Cris Costa no Atlas do Esporte no Brasil).
1912: 1ª subida do Dedo de Deus
Essa foi a primeira escalada técnica em uma parede realmente difícil e desafiadora, e uma ascensão que realmente teve impacto na comunidade alpinística brasileira.
1953: 1ª escalada brasileira de um pico elevado no exterior – Aconcágua
O cume do Aconcágua foi uma espécie de rito de passagem para o montanhismo nacional, mostrando que os brasileiros podiam fazer bonito no exterior também, e não apenas em solo pátrio.
Perón finaliza sua reflexão com a seguinte afirmação: “Eleger um dos três – ou outro marco qualquer – é puramente arbitrário, e sem qualquer critério científico, sujeito a críticas e a contestações”.
Na opinião de Eliseu Frechou, autor de diversos guias de escalada, editor do mais antigo jornal de montanhismo no Brasil e conquistador de mais de 200 vias de escalada, a escolha deve ser focada dentro do maior feito esportiva daqueles mencionados por Perón:
“Considero correta a escolha da escalada do Dedo de Deus, pela sua importância em ter marcado uma nova era de escalada técnica – e não somente subida ou escalaminhada de montanha. A escalada do Dedo marcou o início da escalada técnica no Brasil e o grau de dificuldade tem que ser levado em conta. Na minha opinião, esta foi uma conquista emblemática, serve perfeitamente para o propósito de ser símbolo de uma nova era no montanhismo brasileiro, e portanto motivo para ser comemorada”. Ele continua: “A escolha da escalada do Dedo de Deus não desmerece nem diminui a ascensão ao Olimpo, ou de qualquer outra montanha escalada ou subida por montanhistas, sertanejos, bandeirantes ou indígenas”.
Eliseu ainda cita a realização de uma Assembléia da CBME em novembro, ocasião onde foi decidida a escolha do Dedo de Deus. De acordo com ele, “Qualquer assunto referente à discordância dos procedimentos referentes aos temas da Semana Brasileira de Montanhismo deveria ter sido levada a este fórum e discutida – e votada – por todas as demais federações do Brasil naquela ocasião. Na minha opinião, a discussão posterior é por si só, fora de contexto e enfraquece o montanhismo.”
O montanhista paulista Davi Marski corrobora com a opinião de Eliseu: De acordo com ele, “foi através de um consenso entre diversas federações representativas do montanhismo e escalada, além do embasamento de vários autores, que considera-se que o montanhismo e a escalada brasileira iniciaram-se com a conquista do Dedo de Deus”.
Consenso
Este é o tópico da discórdia. Como vimos existem muitos feitos que poderiam ser considerados como o marco inicial do montanhismo. As palavras de Rodrigo Grazotto Perón, que se absteve de manifestar qual ascensão é sua preferência para receber o título de pioneira no montanhismo nacional enfatiza:
“Eleger um dos três – ou outro marco qualquer – é puramente arbitrário, e sem qualquer critério científico, sujeito a críticas e a contestações. Para piorar, pelo que se pode ver nas entrelinhas, essa escolha mascara uma disputa política entre federações e clubes de alpinismo, e não configura uma real tentativa de promover o montanhismo brasileiro. Como não é algo científico, mas sim uma disputa, deixo de me manifestar”.
É exatamente este o motivo da escolha do Dedo de Deus como marco inicial. Das palavras de Silvério Nery: “A data escolhida para a comemoração representa que o montanhismo tem pelo menos 100 anos se considerarmos seu símbolo mais forte ou midiático, o Dedo de Deus, apenas isso”.
Com receio das conseqüências em eleger um feito mais recente como pontapé inicial do montanhismo brasileiro, Marcio Hoeppers, presidente da FEMESC dá sua opinião em poucas palavras: “A conquista do Dedo de Deus foi um marco histórico, mas não foi o início, dou valor à historia do montanhismo e estamos apagando simbolicamente uma parte dela com esse selo!”
André Ilha também enfatiza esta escolha política:
“Embora, como vimos, outras ascensões relevantes tenham acontecido antes, e qualquer tentativa de se estabelecer um “marco-zero” do Montanhismo no Brasil seja necessariamente arbitrária, a conquista do Dedo de Deus, pelas circunstâncias em que ela se deu, pelas dificuldades técnicas envolvidas e pela repercussão que teve à época se presta muito bem a este papel. Houve, aí, a coisa do orgulho nacional desafiado por escaladores estrangeiros, uma mobilização na cidade de Teresópolis em suporte aos heróis que tentariam subir uma montanha de aspecto intimidante, dias e noites passados em condições precárias, o fogo simbólico aceso no cume, à noite, para celebrar o feito, enfim, toda uma série de elementos que permitem atingir e impactar positivamente um público mais amplo, bem além do nosso acanhado círculo. Por isso, eu acho que, como estratégia de ação, a CBME fez bem, sim, em adotar esta medida, mesmo todos nós tendo absolutamente claro que outras ascensões “esportivas” ocorreram antes, até bem antes, do que a conquista da Via Teixeira em 1912”.
Semana Brasileira de Montanhismo
A falta de um consenso entre federações preocupa o presidente da CBME, que afirma que o tema foi divulgado entre as federações ao longo de todo o segundo semestre, sem que houvesse questionamentos até então: “durante o desenvolvimento dos trabalhos de preparar/organizar o Congresso (brasileiro de montanhismo), percebemos que seria muito mais atraente para divulgação na mídia e busca de patrocínios associar o evento com a comemoração da conquista do Dedo de Deus.
Silvério Nery diz que valoriza as ascensões anteriores à do Dedo de Deus e afirma: “Além disso, como também já consta da programação da SBM, será realizada uma exposição sobre a história do montanhismo brasileiro, onde todas as primeiras conquistas serão amplamente retratadas. Com isso creio que eliminaremos a possibilidade de esquecimento ou merecimento das conquistas anteriores e esses registros ficarão plenamente consolidados dentro da comunidade e na sociedade em geral”. Ele completa: “Mesmo àqueles que discordam dessa minha argumentação, sugiro que evitem condenar um evento com a magnitude que estamos procurando conferir à Semana Brasileira de Montanhismo por conta dessa polêmica. Ao invés disso, vamos pensar no montanhismo brasileiro como um todo e no muito que todos nós temos a ganhar com a realização da SBM”.
Apesar de nada conclusivo, o enfoque agora é não desestimular a realizar da Semana Brasileira de Montanhismo em 2012. Nas palavras de Eliseu Frechou: “Estamos tendo a oportunidade de ajudarmos a acontecer um grande evento de montanhismo no Brasil. Isso é maior do que qualquer outra questão regional”.
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