Travessia Alpha-Crucis, dia 5

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*02 de Julho de 2012 – Segunda-feira 6:30h* – Durante a noite varias vezes acordei com luz da lua furando a mata, cada vez mais baixa, caindo a oeste. Agora finalmente os primeiros sinais dum novo dia. Me sentia muito bem em estar ali. O agudo do cotia sempre foi uma montanha que me atraiu. Talvez por ser como ela é, tão distante e inacessível. Não menos a travessia até a graciosa. Este dia prometia tudo isso, e acima de tudo, o fim da primeira e mais longa etapa. Isso era inspirador, e sem conseguir me conter, novamente fiz baderna no acampamento, e logo todos estavam afim de me matar.

Em pouco tempo estava pronto pra nova jornada. Com a ajuda do Jurandir, fixamos uma fita no lugar. Enquanto se preparavam pro ataque, saio na frente pra tentar sinal no celular. Ligo então pra pessoa amada, e depois pra minha mãe, informando que tudo está bem, e também pra verificar a previsão do tempo. Alem do dia espetacular que se apresentava diante dos olhos, as previsões continuavam favoráveis. Era tudo que precisava ouvir, mas junto a isso, vinha também uma certa ansiedade, pois havia tanto pela frente, e não é comum tantos dias de tempo perfeito por estas serras. Tudo que restava fazer era torcer pra que continuasse assim.
Logo os amigos surgem nos campos, e após abandonar ali mesmo as blusas pra pegar na volta, disparamos rumo ao agudo. Totalmente restaurados, a coisa rendeu bem. Quando vencemos a ultima encosta, passamos pulando as rochas que antecedem o pátio plano que se finda no tubo do caderno de cume, que já podia ser visto cem metros adiante. Novidade total pro Jurandir, que chegava pela primeira vez ali.
A chegada ao Agudo da Cotia, sempre merece uma comemoração especial, mais ainda quando representa a 18ª e ultima montanha da primeira parte da Alpha Crucis. Foi o que fizemos às 8:00h, quando festejamos e nos saudamos euforicamente. Concluída as tarefas de registro, convido os camaradas para ir até a borda do precipício. Pela característica desta montanha, não se pode dizer que conhece o Agudo sem antes ir neste lugar, que fica a uns 50m do cume. É ali que a parte plana da montanha acaba, e subitamente despenca mais de mil metros verticais, num abismo insondável, que só acaba quase ao nível do mar. O visual concede ângulos inusitados e imperdíveis para inúmeros picos, bem como litoral.
Depois de algum tempo bem gasto por ali, estava na hora de nos despedirmos do Ibitiraquire. As 8:50 deixamos de vez o Agudo, rumo ao acampamento. Em menos de meia hora, lá estávamos, iniciando os preparativos para partir.
Fizemos nosso café da manha, constituído de barrinhas de cereais, chocolates, e o terrível meio quilo de amendoins crus, que o Jurandir despejava do pacote aos montes em nossas mãos, sem a menor intenção de economizar. Nas mãos do Sexta, ele virou o pacote sem pena, e o coitado penou pra conseguir dar conta de todo aquele petisco sabor sabão. Claro que pôs a culpa em mim, dizendo que a convocação pra travessia foi muito em cima da hora, e nem deu tempo de pensar em torrar. Eu concordei, pois se a culpa é dele, ele bota em quem ele quiser.
Deixamos a canaleta às 9:30h, e o Sexta ainda estava com as mãos cheias amendoim cru. Em instantes chegamos à Colina Verde, outro ótimo ponto de acampamento, nos campos. Seguimos pelo novo e definitivo caminho que desenhei sob as cartas topográficas, e que foi testada e aprovada na última travessia. Este fica a sudoeste da colina, a aproximadamente 350 metros do topo. Ali, deixa-se os campos em definitivo para seguir por dentro do vale, descendo pela nascente por 450 metros até chegar noutro riacho mais volumoso, encantador, e já bem conhecido por nós. Botamos uma marca lá também.
Aproveito a pausa para passar nos joelhos a pomada que o Sexta levou, e que passava nos seus também. Jurandir não perde tempo e tira uma casquinha da gente. Na mesma hora relembramos que dias antes lá no Ferraria, foi outra pessoa que recorreu aos serviços de enfermaria, e que naquele dia, estranhamente, não houve piadinhas (risos).
Seguindo pelo túnel verde do rio, transpassado pelos raios do sol das dez, em pouco tempo chegamos às belas cascatas. Descendo rapidamente pelas pedras secas, antes das 11h desembocamos no Rio Forquilha, onde mais uma marca foi inserida.
Neste rio, bem mais largo e volumoso, já nos obrigamos alternar pelas margens pra não molhar os pés. Em seu percurso, varias piscininhas convidam para um bom e necessitado banho. Pouco antes do Forquilha virar a esquina a direita, e seguir a noroeste, encontramos o mais belo dos recantos daquele paraíso. Eram piscinas naturais, cristalinas, douradas, e profundas. Estava perto de meio dia, e foi irresistível uma boa parada pra banho e almoço, antes de encarar a subida até o divisor de águas entre Tangará e Cotoxós, a famosa Garganta 235 graus.
O banho foi totalmente revigorante, e sem dúvidas, fundamental para a elevação da moral e auto estima. Uma verdadeira recuperação da dignidade humana. Roupas e calçados também foram lavados para aliviar o budum acumulado de vários dias. Agora só faltava o almoço, novamente a base de barrinhas de cereal, chocolate, e isotônico em pó misturado a água. Olhamos com desprezo pro amendoim cru do Jurandir, e antes de partir, marcamos o importante ponto da saída do rio, com mais uma fita Alpha Crucis.
Agora era seguir córrego acima até sua nascente, e mais um tanto depois dele até atingir a garganta. Logo no início, observamos num banco de areia do córrego, marcas das patas da pintada. A danada fazia pouco tempo que passara por ali.
Quando córrego terminou, como sempre as coisas ficaram confusas. Para acabar com esse problema, decidimos desembainhar os facões e fazer um bom trabalho por ali. Perdemos algumas preciosas horas nisso como sempre, mas o caminho ficou aberto e marcado com fitas amarelas. Finalmente as 13:45h horas chegamos ao colo. Recentemente o pessoal do Nas Nuvens Montanhismo, instalaram um tubo com caderno de registro por lá. Mas ironicamente, o caderno não fora inaugurado, pois esqueceram a caneta. Neste dia nós levamos, e deixamos por lá após breve relato, juntamente com a aplicação da logomarca da travessia numa arvore vigorosa.
Este lugar é muito marcante na travessia até a graciosa. Talvez o ponto mais marcante na verdade, pois é a fronteira entre as montanhas do Ibitiraquire e a serra da Graciosa. Só se sente realmente um pouco mais na Graciosa, quando se cruza este obstáculo natural. O nome de Garganta 235 graus, nasceu na primeira travessia pra Graciosa, em 1997, quando a avistamos da Colina Verde. A linha reta que ligava esta colina até o Morro Sete, passava exatamente por esta garganta, e marcava 235 graus na bússola. Com os amigos Black e Corrêa, demos esse nome pra nunca mais esquecer o azimute.
Dali já pega até sinal de celular. Aproveito pra ligar pro Espalha Brasa avisando que já estávamos nas imediações. Grande susto quando ele parece ter dito que não estava em casa, e que só voltava no dia seguinte. Na verdade ouvi mal, e quando perguntei de novo, confirmou que estaria em casa a noite. Felizmente, pois na semana anterior, deixamos guardadas lá nossas provisões logísticas de alimentação para a próxima etapa da travessia.
O índio Sexta também decide ligar pra esposa, pra pedir que nos espere no recanto Engenheiro Lacerda com uma pizza gigante, que a principio era pra ser quatro queijos, juntamente com uma coca-cola 2 litros gelada. Iniciamos a descida às 14h, super animados com essa expectativa. Alem de finalizar a primeira parte da travessia, ainda um banquete destes nos esperando. Até este momento, o Sexta ainda tinha esperanças de seguir até o final da Alpha Crucis, pois havia tentando com certo sucesso uma negociação para prolongar as férias em mais dois dias.
Mais a frente e ladeira abaixo, chegamos à nascente do Rio Mãe Catira. Desse ponto em diante, seria biboca escorregadia e irritante por muito tempo, até chegar ao remanso do rio, onde a coisa renderia absurdamente se ignorássemos as piscinas, e metêssemos os pés na água sem dó. Porém as solas da minha bota estavam completamente carecas, fora os dois rasgos laterais por onde os pés quase saiam para fora. Isso me causava insegurança, a qual só aumentava a cada escorregão. Fiquei sabendo depois, que o Sexta em certo momento criticou meus argumentos, dizendo que se eu estava mau, deveria assumir ao invés de ficar dando “desculpinhas”. Preferi não dar importância pra isso, pois em grandes jornadas, até mesmo som da respiração dos companheiros, começa ficar irritante.
Alternando entre mata, e rio, ora pelo lado direito, ora pelo esquerdo, íamos avançando. Às 16:45, chegamos ao dique de diabásio, um dos lugares mais belos do rio, e que indica também que o Salto Mãe Catira está próximo. Pouco a frente, uma imensa arvore havia tombado sobre a margem direita do rio, obstruindo a única passagem do cânion. Não havia outro modo de passar a não ser transpô-la. Jurandir segue por cima, com Sexta no rasto. Noto que por baixo, se entalando por entre o oco sombrio das rochas, passa, e me vou. Nesse momento, Sexta se apóia numa grande rocha solta e ela rola, exatamente por onde eu estava passando. Leva outras rochas consigo, e vai desobstruindo o caminho. Se eu estivesse meio metro pra frente, aquela grande rocha de meia tonelada teria me esmagado, e ali seria minha sepultura. Ufa… Essa foi por um triz, comento com o Sexta, que então decide me acompanhar pelo túnel que foi aberto.
Minutos depois chagamos na cachoeira. O Morro do Sete estava visível a partir desta janela pro vazio. Deixamos uma marca ali, e sem muita demora contornamos a esquerda pra descê-la, pois já era 17h, e ainda havia cerca de uma hora até o totem, onde finalmente deixaríamos o leito do Mae Catira de vez. Queríamos chegar neste ponto sem precisar das lanternas, e conseguimos. Antes de deixar o rio, demos uma pausa pra matar a última comida e beber o último suco, que durou milimetricamente o planejado pra essa primeira etapa. Era um alivio estar ali, pois deste ponto em diante, a trilha que demos manutenção quando estivemos no Arapongas meses antes, nos levaria sem problemas até a Graciosa.
Eram 18h quando reiniciamos já com as lanternas frontais na cabeça. Dentro da normalidade, em duas horas estaríamos pisando na Graciosa. Por trilha boa, fizemos a caminhada render, e em pouco tempo chegamos ao último rio de porte a ser cruzado, o qual recebe as águas do Mãe Catira cinqüenta metros abaixo. Feito o cruzo, nova marcação, talvez a última dessa etapa da travessia. Seguimos novamente paralelos ao rio Mãe Catira até deixá-lo de vez vinte minutos a frente, onde a trilha vira 90 graus a direita, subindo forte rumo a Graciosa. Foi um alivio pra todos perceber o ruído do rio ficando para trás depois de um dia todo com ele nos ouvidos.
Logo depois que cruzar o córrego e subir pela cascata, notamos a mata impregnada por fumaça e seu odor característico. Encosta abaixo, do lado esquerdo, notamos um acampamento, e sentimos que estávamos sendo observados. É sempre um momento de tensão encontrar acampamentos predatórios pela serra, ainda mais em plena atividade. Essa turma sabe que está fazendo coisa errada, e sendo assim, está preparada pra tudo. Ao ver três pontos de luz se movendo pela mata a noite em plena segunda-feira, só podem imaginar que é a galera da força verde chegando pra autuar. Com certeza, toda aquela fumaça surgiu, por conta do desespero em apagar a fogueira pra não serem vistos por nós. Certamente éramos alvos de olhares nervosos e facões afiados naquele momento. Passar quietos e rápidos, é sempre a melhor alternativa pra evitar confrontos e tragédias.
Cruzamos o ultimo córrego, e agora seria uma subida dura e constante até final. Jurandir pernas de garça se manda, e eu logo atrás pedindo que não tirasse muita dianteira, pois o Sexta estava ficando muito pra trás. Num momento Sexta de injuria e xinga: Esse Jurandir é um filho da p… mesmo! Pra esse cara não adianta pedir, tem que mandar! Respondi: O cara está na dele Sexta… não tem culpa se você está lento! Afinal, como ele mesmo havia dito algumas horas atrás no rio, quando se está mau é melhor assumir, ao invés de ficar arranjando “descupinhas”, ou xingando o companheiro (hehe). Felizmente nesta hora, já estávamos muito perto. Exatamente às 20h, o sorriso voltou ao tocarmos o marco 22 numa das curvas da Graciosa.
Estava completamente deserta. Só nós por ali comemorando a conclusão do primeiro e mais extenso elo da Alpha Crucis. Agora seria só caminhar mais um pouco para chegar ao recanto Engenheiro Lacerda, e aguardar a esposa do Sexta que vinha de Paranaguá, trazendo a preciosa 4 queijos com coca-cola. Foi nesta hora que Sexta concluiu que mesmo tendo conseguido mais dois dias, não seria o suficiente pra finalizar a travessia, e já pensa seriamente na possibilidade de retornar com a esposa pra casa.
Em quinze minutos chegamos ao recanto. Foi um grande alivio soltar as mochilas e usá-la como encosto, num lugar plano e com teto. Lógico que com o céu estrelado, um teto era meio irrelevante, mas como fazia tempo que não víamos um, que fez muita diferença. Hora ou outra passava um veiculo, e ligávamos as lanternas em modo piscante, no sentido de orientar a pizza sobre nossa localização. Mais descansados, começamos perambular feitos zumbis pelo na escuridão do recanto. Sexta descalço, andava como se estivesse pisando em brasas. Seus pés cozinharam dentro da bota encharcada por horas a fio.
Admiramos a silhueta negra do Ibitiraquire, impressionados por ter saído de manhã do longínquo Agudo da Cotia, e agora estar ali. Com o corpo já frio, somado ao frio da noite, o vento começou incomodar. Finalmente às 21h a espera acabou. Aqueles faróis se envaretaram pro nosso lado, e a alegria foi geral. A melhor pizza do mundo estava chegando, no lugar mais improvável, na situação mais incomum. A euforia só foi quebrada ao abrir a caixa e constatar que, de quatro queijos não havia nada. Veio no lugar, meia calabresa e meia napolitana, e olhamos pro Sexta, meio decepcionados. Ele por usa vez olhou pra ela e disse meio inseguro: Eu não falei quatro queijos? Ela responde: Ué… mas foi o que pedi lá… Bem, agora era tarde pra tenta corrigir o erro. Mas considerando que nem eu nem Jurandir comemos carne, teríamos que dividir a meia pizza que sobrou. Sexta que se deu bem, pois além da meia calabresa, ainda tinha os pães com ovos que pediu pra sua mulher trazer. No fim das contas, Jurandir acabou comendo um pedaço de calabresa também, meio a contra gosto. Com a coca tudo certo, e bebemos até se fartar.
Depois do banquete, chegou a hora do Sexta decidir o que fazer. Sua esposa reforçava a hipótese do retorno, alertando sobre serias complicações no trabalho, caso insistisse na idéia de continuar na travessia. Tudo conspirava pra ele desistir: Estava exausto, havia um carro ali, com uma mulher que o levaria pra casa, e dormiria numa cama macia depois de um banho quente, sem risco de perder o emprego. Tudo isso fez com que sua decisão fosse facilmente tomada. Eu e Jurandir não interferimos por razões óbvias. Então nosso amigo joga de vez a surrada mochila no bagageiro. Fazemos o acerto da pizza e da coca, R$20,00 de cada. De brinde, levamos o que sobrou da coca. Hora da despedida, e então o veículo desaparece na escuridão das curvas da Graciosa. Sem mais motivos pra ficar ali, voltamos a caminhar pra cobrir o quilômetro e meio que faltava até a Casa de pedra.
Quase chegando, aproveito a luz do poste para pegar o celular e ligar pro Julio Fiori, informando que a primeira parte da travessia fora concluída, e também do plano para os próximos dias. Questiono sobre o tempo, e ele confirma que não há previsões de chuvas. Enquanto falo ao celular, observo ao longe a casa do Espalha Brasa com as janelas e porta abertas, e luzes acesas. Ele está alerta na varanda, nos observando, após o alvoroço patrocinado pela cachorrada. Parecia inquieto, então trato de desligar, e seguimos rumo a casa, enlouquecendo ainda mais os caninos.
Eram 22h, e a primeira coisa que disse em tom de deboche foi: Estão atrasados! Contamos-lhe da pizza e de tudo mais que passamos desde o inicio. Conversamos por meia hora até por fim resgatar a carga de suplementos que havíamos deixado semana antes. Ele nos ofereceu a varanda da casa pra passar a noite, mas não queríamos incomodar, e o gramado parecia bem mais atraente, até porque se precisássemos levantar, não íamos despertar os animais.
Distanciamos uns cem metros, e escolhemos um lugar no bosque bem próximo da trilha pro Morro do Sete. Estar ali depois dos lugares que dormimos, era como estar numa pousada. O simples fato de dormir num gramado plano sem pedras e raízes castigando as costas, já contrastava com todos os demais lugares que pernoitamos.
Perto de 23h finalmente estávamos prontos pra uma merecida noite de repouso. Adormecemos satisfeitos com o andamento da travessia, e com o sucesso da primeira etapa. Combinamos que no dia seguinte, não haveria hora pra acordar, nem tão pouco pra partir. O momento de recompor as forças finalmente chegara, antes que fosse dado inicio a segunda etapa da Alpha Crucis.
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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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