Travessia Ibitiraquire: da Fazenda da Bolinha X Marco 22 MDA e ARCANJOS

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Desde que cruzara pela segunda vez a Serra do Ibitiraquirê em 2023, iniciando a Alpha-Crucis, ansiava voltar aos sertões do Marco 22 para resgatar os livros das conquistas e substituí-los por livros novos. Os serviços que esses pontos de registro prestam aos montanhistas excedem em muito, dar palco à registros fúteis de mensagens engraçadinhas para a posteridade. São elementos que agilizam buscas e resgates, documentam a história do montanhismo, acolhem as angústias dos solitários e frequente, embalam tardes frias e molhadas nas barracas. Nos preparativos, trilhamos cada um dos trechos em separado, conhecendo individualmente os elos da insana corrente que constitui a AC e durante nossa passagem, procurávamos identificar o que poderíamos fazer para contribuir com sua história. Ao final, na correria dos últimos minutos de preparação, esquecemos de providenciar os cadernos e certos de que seria algo fácil de resolver em Curitiba, partimos de Santos/SP, São Paulo e de Cotia/SP. Descemos dos ônibus com considerável atraso, suponho decorrente de acidente na estrada, algo que já notara ser estranhamente frequente. Na loja de lembranças e presentes da rodoviária, não encontramos nada razoável e restou nos resignarmos à realidade, entendendo que não era o momento para essa ação.

Morando em Santos, a oportunidade surgiu no começo de 2025, com a proposta dos ARCANJOS (equipearcanjoficial) de passar por aquelas plagas. O elevado nível técnico do grupo permitia a ousadia de pensar essa travessia com uma equipe grande, 19 pessoas. A proposta do grupo, explicitada para cada novo integrante é clara: praticar montanhismo autônomo, dividindo os custos da logística e cumprindo as “condições de contorno” de cada proposta: locais e horários de entrada e saída para resgate e retorno, dispor dos equipamentos mínimos de segurança por vezes prescritos, ter razoável condicionamento físico e estabilidade emocional para lidar com as adversidades das áreas remotas, saber navegar. Em trilhas mais delicadas, por vezes se prevê o concentrar em pontos preestabelecidos para viabilizar a ajuda mútua, em caso de algo mais grave. O participante de cada uma das propostas tem total liberdade para fazer o planejamento de sua pernada conforme melhor lhe aprouver, bastando atender às tais “condições de contorno”.

Nas vésperas, a cautela com a saúde materna, fragilizada por uma intercorrência clínica tirou a Amanda da travessia e o reestruturar de responsabilidades profissionais tornou a folga da Fernanda na sexta-feira inviável. A primeira ainda conseguiu repassar a vaga ao Cicero. O Danilo, ainda não plenamente recuperado de uma dengue, optou por não arriscar, renunciando à travessia também. O Lacerda torcera o tornozelo na travessia Marins-Itaguaré do final de semana anterior e estava inseguro sobre a conveniência de caminhar antes de uma recuperação total. A incerteza do tempo, nas vésperas, fez com que uns e outros cogitassem alternar o destino ou mesmo abandonar a viagem. Entre impossibilitados, desistentes, inseguros e obstinados, procedeu-se uma enquete sobre alternar o destino, com o os recalcitrantes prevalecendo por larga margem.

Com a incerteza do tempo, revisaram-se as estratégias de forma a contemplar, com segurança, uma caminhada pelo Ibitiraquire, mesmo que se mostrasse inviável concluir pelo M22 em decorrência de chuvas mais intensas. Pontos de resgate alternativos foram designados e a comunicação entre as equipes em campo e o condutor da van de resgate, testada de forma bidirecional. O link de rastreamento via satélite foi disponibilizado no grupo, para viabilizar eventuais ajustes. Frente à incerteza do tempo, a travessia inicialmente planejada para ser feita em 4 dias, foi rearranjada para 3 dias. A ida ao Agudo Catita precisou ser preterida, por segurança.

Reduzidos a 16 pessoas e alguns sonhos, chegamos na Fazenda da Bolinha às 5h, fizemos os últimos ajustes de mochilas e partimos em duplas, trios, quartetos… os grupos decorriam das afinidades particulares, da divisão de equipamentos ou estratégias planejadas para a caminhada do primeiro dia. O ponto de encontro desse pernoite seria o cume do Siririca. Ali, faríamos a última conferência do tempo e cada um avaliaria a sua condição para prosseguir pela Interagudos ou alternar para as muitas trilhas e desafios que a Serra do Ibitiraquirê oferece.

Parti, em dupla com o Douglas, às 5h15, poupando energia por saber quão extensa era a pernada do primeiro dia. Faríamos a sequência Camapuã, Tucum, Cerro Verde, Meia-Lua, Lua, Luar, Siri, Caraguatá e Siririca. Para isso precisaríamos encontrar a Variante Mandela, uma ligação em crista entre o Cerro Verde e o Lua, que faria a passagem pelo Meia-Lua. Se por um lado, essa ligação poupava alguns poucos metros de altimetria e oferecia vistas insólitas das montanhas e vales, por outro, reduzia a oferta d’água, nos conduzia por veredas menos frequentadas, de forma que a vegetação espinescente representaria uma dificuldade adicional a se somar com a navegação por um trecho totalmente desconhecido de todos. Ingredientes ideais para o início de uma pernada de responsa.

Mesmo em passo tranquilo e as cargueiras pesadas com os materiais para 4 dias, mais os livros de reposição cobrando seu verter de suor e ofegar da respiração, alcançamos o Camapuã e o Tucum às 8h46. Fiz o devido registro no livro de cume, pois ninguém sai para se perder ou se machucar, mas Murphy está sempre de olho no montanhista incauto, displicente ou imprudente. Na dúvida, melhor prevenir, sempre.

 

Em trio desde a subida da laje do Camapuã, eu, a Michele e o Douglas descemos o Tucum, passando pelas suas 6 cordas até o vale. Às margens do plácido regato, fizemos uma breve pausa para hidratação e lanche no Vale dos Perdidos. Com o inventário de d’água pensado para as próximas 4 horas por crista desconhecida, tocamos em direção ao Cerro Verde, atentos aos rastros que indicassem os cruzamentos de trilhas e acessos. Rapidamente alcançamos o cruzo baixo, que permite acesso ao Lua pelos vales, onde duas cargueiras sinalizavam que os colegas haviam seguido ao Cerro Verde de ataque, pretendendo retornar ali e seguir pelos vales.

Enquanto subíamos encontramos a Lanny e o Diego que desciam e ele manifestou interesse em também se embrenhar na Variante Mandela, de forma que acertamos que buscasse a mochila para entrarmos todos juntos. Na sequência, o Cicero e a Lanny, com a chegada da Leticia decidiram prosseguir pelo caminho dos vales, mesmo. Parte do grupo que atacara o Pedra Branca, Rafael, Manoel, Mário (Catiorro) e Fram se somaria ao nosso trio, durante a subida e descida ao cume do Cerro Verde, para os devidos registros de passagem e destino.

Quando passamos, subindo em direção ao Cerro Verde, notamos a discreta entrada à direita, que passa facilmente desapercebida e mesmo com nosso track de referência já contemplando essa entrada, entendemos mais prudente subir uma vintena de metros verificando se havia algum outro rastro de trilha no sentido que buscávamos antes de entrarmos nesse “mundo perdido”. Após observarmos de uma posição mais elevada não restou dúvida que a Variante Mandela começava logo após uma pequena moita de arbustos, no sentido Cerro Verde – Tucum. Assinamos o livro de cume do Cerro Verde, sem tomar o cuidado de registrar que tentaríamos a Variante Mandela. Erro meu que anotei a passagem no livro. Registro feito, ainda que incompleto, tocamos encosta abaixo até o cruzo alto, que franqueia acesso à Variante Mandela. A cota observada ali, 1576m, é cerca de 80m inferior ao cume do Cerro Verde. Após pouco mais de duas vintenas de metros de campo, o rastro mergulha para dentro da mata, por onde seguimos observando as marcas de passagens pregressas e as ocasionais fitas. No começo o som da água corrente fez supor que a cruzaríamos em algum momento, mas a trilha envereda para a esquerda e, logo, o som se perde. Após descer um bocado, alcançamos o trecho de menor altitude, marcando 1526m. Passamos a um subir constante, alternando trechos de campos e trechos de florestinhas de ombro até alcançarmos o cume do Meia-Lua. Ali, algumas rochas expostas pelo passar dos anos se fizeram de palco para que a Natureza nos recompensasse o suor com o espetáculo da face sul do Cerro Verde, com sua brutal verticalidade e espantosa beleza.

Registros feitos, voltamos a caminhar, agora em direção ao cume do Lua, onde a Variante Mandela se conecta a trilha “clássica” da interligação entre o Vale dos Perdidos no colo Tucum – Cerro Verde “por baixo”, avançando com cruzar de campos e florestinhas. O sexteto composto por Rafael, Michele, Catiorro, Manoel, Fram e Diego somou-se ao trio que optara pelo caminho dos vales, Cicero, Lanny e Leticia, deixando as cargueiras no cruzo e fazendo um ataque até os Ovos de Dinossauro, enquanto eu e o Douglas tocamos em frente, em passo tranquilo até o colo entre Lua e Luar e, na sequência ao cume.

 

Às 13h30 alcançamos o cume do Luar, onde encontramos um livro de cume novo, instalado pelo Marcelo Denarchi, do Clube Paranaense de Montanhismo (CPM) durante sua travessia Alpha Crucis Express (ACE), em solitário. No livro de cume, observamos também registro da passagem do Jurandir Constantino e do Ivon César (Índio Sexta), tentando a ACE em dupla. Por infelicidade, não dispunham de caneta funcional, de forma que fizeram o registro da forma que foi possível, talvez com um toco de palito de fosforo carbonizado. Apenas como registro das façanhas, soube que os 3 concluíram o desafio, à despeito das condições duras de clima nos trechos finais da travessia da dupla, com chuva e temperaturas negativas.

O pessoal que havia feito o ataque aos Ovos nos alcançou no começo da descida para o vale entre o Luar e o Siri. Ao atingirmos o talvegue do vale, dobramos à esquerda e tratamos de seguir pelas margens do pequeno curso d’água, perdendo altitude de forma gradual enquanto avaliávamos o momento de coletar água para o pernoite. Após alguns minutos de progressão, já próximos do ponto onde deixa-se o talvegue e inicia a subida ao Siri coletei o máximo de água que podia:3,5 litros. Já andava pesado, com o material para os três dias planejados, somado aos livros de cume para reposição e ao material para um eventual terceiro pernoite, caso não conseguíssemos, por qualquer motivo, alcançar a estrada no dia 3. Um pouco de peso adicional traria conforto, segurança e contribuiria para o treino. Dessa forma, teria fartura de água para cozinhar e me recuperar na noite que iniciaria cedo e duraria cerca de 12 horas. Recomendamos aos colegas de trilha que fizessem o mesmo, coletando a água necessária para a noite e para a descida pela face sul do Siririca na manhã seguinte.

Iniciamos a subida para o Siri, sempre em passo tranquilo, poupando energia. As cargueiras, com o peso extra do precioso líquido, pareciam querer nos ancorar aos baixios do vale. Com a jovialidade associada ao bom condicionamento físico, a dupla “el” (Manoel e Rafael) tocou para cima em ritmo forte. Nós? Nós perseveramos, com a Lanny e o Cicero um pouco a frente, ganhando centímetros de altitude a cada passo. Praticamente no cume do Siri, uma triste surpresa nos esperava: alguém “perdera” um shit-tube. Mal-feito e pouco funcional, com diâmetro de cerca de 10 cm e uns 60 cm de comprimento. Usado. Aliás, mal-usado, dado o odor repugnante que a abertura nos brindou. Tentei que o colocassem na capa de chuva da minha mochila, mas havia pouco espaço. Honrando a ala feminina dos Arcanjos, prontamente a Michele se ofereceu para subir com o infame presente que algum NÃO-MONTANHISTA abandonara, na natureza que diz amar em postagens nas redes sociais. Aqui, vale frisar: o nefasto objeto não estava na trilha, apenas, como se houvesse caído. Não, havia sido “escondido” ao lado da trilha. Não houvera apenas displicência com transportar dos dejetos e do seu contentor. Houvera má fé em escondê-lo. Frente a esse tipo de postura, não há educação, pazinha para cavar ou normas de mínimo impacto que resistam. Lamentável. Como desencargo de consciência, apenas, por supor que a negativa seria a resposta do autor da molecagem, questionamos todos os acampados no Siririca. Nesses casos, a contrariedade do descaso de uns com as montanhas me é amenizada com a oportunidade de contribuir com a preservação, tanto da serra quanto das trilhas para que outros montanhistas apreciem a trilha como deve estar: limpa e agreste.

 

Alcançamos o cume do Siri, descemos ao colo Siri-Caraguatá (muitas vezes indicado erroneamente nos tracklog como “Sirizinho”), um colo alto, de forma que a descida é curta e logo passamos a subir ao penúltimo cume do dia, rapidamente alcançado. Nova descida, também breve, pois o colo entre o Caraguatá e o Siririca é elevado e o acesso ao Siririca já se dá com a altímetro marcando 1488m, de forma que faltavam apenas 266m de ganho vertical para alcançarmos o cimo da montanha onde faríamos a pernoite. Um somar de infinitos passos e logo, estaríamos lá, ainda a tempo de apreciar o pôr do sol visto da primeira das placas. Descansamos um pouco, apreciando o visual e tratamos de nos reunir com o restante do grupo, para montarmos barracas. Escolhi a área ao lado do livro de cume, apesar de ser coberta por pedriscos, por permitir controlar a passagem de quem chegasse para registro. O local apesar de plano, não permitia o fincar dos espeques e era um bocado exposto aos ventos, como eu perceberia algumas horas mais tarde. Soube que um trio, Denis, Caio e Mina ainda não havia chegado ao cume. Uma vez que nosso deslocamento fora bastante tranquilo, foi uma surpresa a ausência deles. Reportei as informações às administradoras do grupo, para que ajustassem à logística de resgates, contemplando os pontos alternativos que haviam sido estudados. Como obtive sinal de internet, ainda que intermitente, (operadora VIVO) informei no grupo da trilha para que o trio, ao alcançar um ponto com sinal soubesse de nossa intenção em progredir para o Marco 22 com o amanhecer do 2º dia. Algo similar às cartas posta-restante dos tempos pré-internet, quando se deixava correspondência em pontos de passagens previstos para andarilhos

Acampamento montado, preparei uma refeição portentosa (para o cenário): entrada de sopa cremosa de mandioquinha, prato principal porção generosa de purê de batatas, com abundante molho bolonhesa e farto queijo ralado. Para acompanhar uma limonada e alguns doces. Busquei o shit-tube no acampamento da Michele e o deixei com as extremidades lacradas por um dos pares luvas de procedimento que carrego para eventual emergência. Um montanhista que chegara há pouco e que acampara na laje rochosa, sob a placa, quando perguntei se vira alguém subindo, comentou que desceria até o Última Chance para buscar água, pois haviam cometetido o erro de subir com menos que o necessário Na descida, verificaria se havia alguém em movimento pela encosta. Erro crasso, mas que atire a primeira pedra quem não errou ainda. Cedi um litro d’água para ele e o pessoal que o acompanhava. Confesso que não tentei entender como ocorrera o erro. Eu dispunha de água em abundância e ele manifestara que não. Isso me bastara. Ofertou-se para descer com o lixo que havíamos coletado em retribuição, ao que gentilmente, declinei.

Através do comunicador/rastreador satelital, baixei uma previsão do tempo atualizada, avaliando cuidadosamente os cenários delineados pelos modelos computacionais. Considerei que, mesmo com o pior tempo previsto, teríamos plenas condições de seguir, com segurança, até o Marco 22 na Estrada da Graciosa. O horário das chuvas previstas e sua intensidade apresentaria notável proximidade com o realizado, indicando que o modelo ECMWF para aquela região tem boa acurácia. Com certeza teve, pelo menos em nosso caso concreto.

Dia 2

A partir das 23h, o vento fizera as extremidades da minha mal ancorada barraca drapejarem com vivacidade, de forma que dormitei em vigília até pouco depois das 4h, quando a ansiedade venceu o cansaço da véspera e a paciência entregou os pontos. Arrumei as coisas com calma, garantindo que os equipamentos estivessem protegidos da mais intensa das tempestades.

Mochila arrumada, fiquei a apreciar o dia que ensaiava despontar. Abrigado do vento frio pela quadrupla camada de camiseta-base, de trilha, jaqueta de pluma e jaqueta de chuva no tronco e, nas pernas, pela dupla camada de calças, preparei meu café da manhã e fui me inteirar das condições da equipe que pernoitara espalhada pelas áreas de acampamento do Siririca. Soube então que o trio faltante, Caio, Mina e Diego chegara ao cume perto das 23h. Reportei às administradoras a auspiciosa notícia às 6h, informando também que postergaríamos em cerca de uma hora nossa partida, em deferência ao trio que pouco se alimentara na véspera, ao chegar. Dessa forma, poderiam fazer uma boa refeição matinal e recuperar as forças para concluírem a travessia. Com o dia que nascera ensolarado, todos os 17 haviam optado por enfrentar as agruras do lado B da Serra do Ibitiraquire. À bem da verdade, o primeiro dia fora apenas uma aproximação para a “cereja desse bolo”.

A partida havia sido prevista para o nascer do sol, 6h40. Com a deferência ao trio que persistira na véspera, todos tiveram valiosos minutos extras para café da manhã e arrumar de cargueiras. Partimos às 7h40, na longa descida da face sul do Siririca. Nessa descida, feita em grande parte freando o corpo com auxílio da vegetação que cresce à margem da trilha, 3 ou 4 lances de cordas demandam maior atenção. Há uma greta profunda e um lance de laje rochosa, onde a inclinação da rocha e a mistura escorregadia de limo e lama somam-se à grande exposição, criando o que acredito ser o ponto mais perigoso da descida. Quando a declividade alivia, caminhamos algumas centenas de metros sobre os charcos que formam as nascentes de pequenos riachos. Alguns cruzaremos à frente, como o que denominamos “peixinho”, outros irão compor o rio do Meio e próprio Rio Forquilha, uma das primeiras rotas para fazer essa travessia, muito antes de conseguirem viabilizar a Interagudos, traçado que demandou anos de paciência, suor e mesmo sangue para ser conquistado.

Alcançamos o cruzo Agudo Lontra Baixo, que franqueia à direita acesso ao Colina Verde, área clássica de acampamento de quando essa travessia era muito mais bravia. Hoje, com a Interagudos, faz pouco sentido acampar ali, à exceção de uma caminhada mais contemplativa, com o acesso ao Siririca iniciado mais cedo ou de forma direta. O visual que se descortina do Colina Verde é espetacular.

Como não pretendíamos passar pelo Colina Verde, dobramos à esquerda no cruzo baixo e continuamos a ganhar altitude gradualmente, até alcançarmos o cruzo Agudo Lontra Alto, onde havíamos planejado acampar durante a travessia AC de 2023. Durante a travessia, foi necessário que eu e o Douglas antecipássemos o pernoite para aguardarmos a dupla Macedo e Guilherme, que voltavam dos distantes ataques ao Pedra Branca e Camacuã. Ao ganharmos altitude percebemos que parte do grupo que seguia no “fecha” da equipe, tomara a outra direção no cruzo baixo, e subia ao Colina Verde. Sinalizamos para que nos alcançassem à frente, avaliando que, baseados no track de referência logo nos alcançariam. No cruzo alto, deixamos as cargueiras e tocamos encosta acima, alcançando o cume às 10h45, colocando o primeiro dos livros de cume que portávamos para substituir os livros degradados que constatamos nas travessias de 2023. Fizemos os devidos registros de passagem e substituição do livro, envolto sequencialmente por camadas plásticas e com uma toalha absorvedora de umidade. As canetas que estavam no tubo de cume não estavam utilizáveis, de forma que as levamos conosco. Como não dispúnhamos de canetas em quantidade suficiente para todos os livros que ainda trocaríamos, optamos por deixar esse ponto sem caneta, para ser suprido em momento futuro.

Retornamos ao cruzo alto, retomamos as cargueiras e seguimos pela Interagudos, costeando o Lontra até alcançar o ponto de acesso à ligação Lontra-Cotia, concluída em 2023 e sinalizada com fitas azuis. Nesse trecho, encontramos o Felipe que seguia à frente, aproveitando para praticar a navegação em ambiente menos antropizado. Em pouco tempo, alcançamos o cruzo com a trilha que sobe a partir do vale do rio Forquilha, dando acesso ao Colina Verde, constatando, na passagem o escoar de água em dois pontos distintos. Importante ter em mente que essas águas são sazonais. Deixamos as cargueiras no cruzo e, com os bolsos abarrotados do mínimo necessário, rumamos para o cume do Agudo da Cotia, alcançado às 12h00. Procedemos a substituição do livro novo, com os devidos registros e às 12h15 iniciamos o retorno em direção às cargueiras. Novamente, as canetas que ali estavam se mostravam imprestáveis e foram coletadas para descarte.

Seguimos ganhando e perdendo altura conforme o terreno exigia, cumeando o Agudo da Cuíca às 13h43, recolhendo o livro que estava totalmente encharcado e colocando um novo livro, protegido por camadas plásticas que acreditamos que serão efetivas. A tampa desse tubo, se não me falha a memória estava trincada.

Prosseguimos em passo tranquilo, apreciando a tarde agradável na serra e logo, às 14h52, trocávamos o livro de cume do Agudo da Marmosa, talvez o livro em pior estado que recolhemos. Entre o Marmosa e o Tangarim a trilha mantinha-se bem fitada e com rastros evidentes, porém ao descermos ao colo Tangarim – Tangará, notamos que as marcas de passagem ficam menos obvias e há menor abundância de fitas, o que faz supor que esse trecho ainda não está otimizado ao gosto dos idealizadores da Interagudos.

Alcançamos a Garganta 235 às 17h, tratamos de providenciar a troca do livro e de fazer uma pequena manutenção na fixação do tubo de guarda do livro de cume, enquanto aguardávamos que o grupo se reunisse. O Lacerda chegou pouco depois, vindo do Tangará que cumeara pelo trajeto otimizado para a Interagudos. Chegamos a cogitar que ele retornasse ao cume do Tangará para fazer dupla com o Douglas, mas entendemos que seria melhor ele seguir para o acampamento com o primeiro grupo e eu subir com o Douglas. Com a decisão tomada, tratei de arranjar minhas coisas para caso ocorresse a chuva prometida antes de retornarmos, coloquei uma lanterna extra no bolso da jaqueta, alguns lanches de trilha, caneta, canivete e toaha absorvedora de umidade.

Com tudo preparado para partirmos para o Tangará, nosso grupo de fechamento nos alcançou na G235, e, intimoratos como lhes é de praxe, quase todos quiseram fazer o ataque ao Tangará. Dessa forma, alternamos as tarefas, com o Douglas subindo ao cume Tangará com o Rafael, o Catiorro, o Caio e a Letícia. Eu subiria ao Corocoxós para adiantar o acampamento com a Mina. Com esse arranjo talvez ganhássemos 15, 20 minutos para os últimos a chegarem no Corocoxós. Pouco tempo, mas que faria muita diferença caso a chuva prevista nos alcançasse antes de termos o acampamento montado. O quinteto partiu com a missão de trocar o livro de cume e eu e Mina, em direção oposta, para preparar o acampamento.

Subindo sem pressa, aguardando que a Mina me alcançasse após cada lança mais forte, atingimos o cume do Corocoxós às 18h20, onde o pessoal que subira antes, já montara o acampamento, à moda do Paraná, amassando parcialmente a vegetação e lançando as barracas sobre a vegetação, com o menor impacto possível. Armei minha barraca e preparei mais uma área para a barraca do Douglas, antes de proceder a limpeza do tubo de cume dessa montanha e instalar o último livro que portávamos. Optamos por fazer uma divisão de barracas de forma a estressar menos a área de cume. Pancadas de chuva intermitentes e, ainda leves, sinalizavam a acurácia da previsão de que dispúnhamos. Orientei que a Mina escolhesse a área de acampamento e tratasse de prepará-la para que, quando a Leticia chegasse com o material, fosse apenas questão de instalar a barraca. Os pingos de chuva, intermitentes, pareciam sinalizar que a tempestade se avizinhava. A Mina, depois de escolher um local meio que plano e tentar prepará-lo para um pernoite confortável por alguns momentos, pediu abrigo na barraca do Cicero para sair da chuva e esperar que Letícia chegasse com o material da barraca em sua mochila. Claramente, a caminhada do dia, somada ao acampar tardio do primeiro dia, haviam lhe minado forças e disposição. Pouco depois chegou o primeiro grupo de ataque ao Tangará, o trio Manoel, Fram e Diego, que partira ao ataque sem aguardar a chegada na Garganta 235 do grupo da retaguarda, quinteto composto pelo Rafael, Letícia, Mário, Caio e Mina. Rapidamente se ajeitaram e trataram de preparar o jantar. Saberia depois que, mesmo com todos os esforços não haviam logrado êxito em abrir o tubo de cume. Da mesma forma, o Lacerda também não conseguira abri-lo.

Com o acampamento montado, vesti a jaqueta de chuva, coloquei uma segunda lanterna no bolso, alguns doces e retornei pela trilha por umas dezenas de metros, encontrando o pessoal que chegava da troca de livro no Tangará no final da subida.

Ajudei o Caio a escolher um local e no montar de acampamento, depois fiz o mesmo com o Mário. Enquanto isso, a dupla Leticia – Mina iniciava a montagem da barraca. Como não encontravam os espeques e a barraca delas é semi autoportante, amarrei as linhas das extremidades dos pés à vegetação. De algum lugar, surgiram dois espeques, usados para a fixação da porta ou avançê, não observei direito. Douglas e Rafael rapidamente estavam com o acampamento montado também. Agora, abrigados, estávamos prontos para a chuva, que chegaria apenas mais tarde, com rajadas intermitentes.

Com todos instalados, preparei meu jantar, composto por uma porção generosa de purê de batatas, uma sopa instantânea de creme de milho reforçada com polenta cremosa, numa combinação que, particularmente, não apreciei muito o sabor. De qualquer modo, era nutritiva e me forcei a comer uma boa parte. Cedi ½ litro d’água para o Catiorro que não abastecera na plenitude ao passar na nascente da encosta do Tangará.f

Dia 3

Programei alarmes para tocarem a partir das 2h, mas despertei algumas vezes durante a noite conforme a chuva intermitente apertava até moderada e estiava até quase cessar. À 1h30 parecia que nosso destino seria caminhar na chuva, o que não era algo que animasse muito. Porém, às 1h40 a chuva cessou e, ao colocar a cabeça para fora da barraca pude ver estrelas em algumas direções. Tudo indicava que o prognostico de sol entre nuvens seria confirmado ao nascer do dia.

Como medida de segurança, a alvorada foi prevista para 2h da madrugada e o início do deslocamento para 4h. Dessa forma, sem forçar passo, chegaríamos no Arapongas pouco antes do nascer do sol, com uma grande janela de tempo para eventuais ajustes ou dificuldades. A previsão do tempo apontava que o tempo mudaria para chuva mais frequente apenas na madrugada de domingo; mesmo assim um dia com neblina ou nuvens baixas poderia tornar a navegação muito mais delicada. Havíamos optado pela saída pela crista do Arapongas também como forma de termos a navegação facilitada, por ser mais “orgânica” e ter, ao nosso olhar, muito menor quantidade de pontos de atrito, onde pequenos erros ou perdidos tomariam precioso tempo para serem identificados e corrigidos.

Desmontei acampamento com cuidado, guardando cada item de forma criteriosa na mochila. A prática traz alguma eficiência e 3h eu estava com tudo guardado, café tomado e pronto para partir. Tentei cochilar um pouco sobre o capim que permanecera seco por sob a minha barraca, mas a ansiedade logo me pôs de pé para ver no que podia ajudar os outros em seus preparativos.

Pouco antes das 4h, todos estavam com as cargueiras prontas, vários com elas já vestidas, em prontidão para partir. Foi bonito ver o estoicismo e a disposição com que se lançavam a uma caminhada noturna, pela mata molhada de uma região desconhecida e de elevada complexidade para navegação. Ali, contar com bussola, GPS ou mesmo fitas indicativas de direção exige alguma competência no acompanhar da evolução do trajeto para identificar eventuais erros com brevidade e corrigi-los sem grande perda de tempo.

O alarme tocou às 4h, e conforme acordado, nos colocamos em movimento, uma longa fila de lanternas a serpentear pelos campos e florestinhas das encostas do Corocoxós e do Arapongas. Em pouco tempo passamos pela Parede das Lágrimas, onde a condensação da umidade noturna na vegetação da encosta vertical à direita resulta em um gotejar constante. No final da descida ao colo, Corocoxós – Araponga, há uma pequena grota. Nela, com um canudo, consegue-se tomar alguns goles de uma nascente. Não é garantido, mas quando passamos na AC em 2023 foi providencial para me saciar a sede e permitir ceder o restante d’água ao Guilherme que estava com a garganta inflamada/infeccionada e receoso de complicar ainda mais sua situação, o que lhe obrigaria a desistir da travessia.

Tocando sem pressa e com bastante cuidado, passamos pela região das gretas de maior exposição da encosta, com “apenas” dois sustos: o Rafael confiou no solo após a greta, que cedeu ao receber seu peso. Felizmente, conseguiu se firmar com a vegetação que segurava e eu pude, dar pequeno apoio. Não seria o único a sentir o coração pular do peito nesse trecho.

Alcançamos o cume do Araponga às 6h10 e constatamos que o livro estava integro, protegido por duas camadas plásticas, tendo registro da passagem da dupla Jurandir Constantino/Ivan Cesar (Índio Sexta). Chegamos a cogitar trocar o livro, para preservar os registros históricos, mas não dispúnhamos de livro específico. Assim, optamos por não o trocar, acrescendo apenas mais uma camada de proteção contra umidade. A tampa desse tubo de cume está quebrada e, quando passarmos por lá novamente, tentaremos levar tampas novas para esse tubo e para um outro, que também está danificada.

Iniciamos a longa descida pela face oeste do Arapongas, andando a maior parte do tempo por sua crista ou pela alternância de campos e florestinhas em sua encosta até alcançarmos o pequeno e plácido regato que marca o início da mata mais arbórea. Nesse ponto, a pausa para coleta de água foi breve e andamos umas centenas de metros antes de constatar que o Rafael havia ficado para trás, após buscar um local adequado para fazer um buraco matinal. Grupo grande a comunicação fica prejudicada, meio que “inevitavelmente”. Depois, saindo da florestinha, em um desses trechos de campus, às 7h17, o sol do sábado, ainda um infante garoto, iluminava as encostas verticais do Morro do Sete na Farinha Seca e mais distante, toda a região da Serra do Marumbi. Impressionados com a beleza da paisagem, fizemos uma breve pausa para registro e contemplação. Em seguida, continuamos a perder altitude, cruzando as fraldas serranas até alcançar, às 9h42 o Dique Diabásio. Fizemos uma pequena pausa para lanche antes de retomar a caminhada, prevendo uma parada para banho na base do Salto Mãe Catira. Da cabeceira da queda fiz uma foto do Lacerda às 9h50 e pedimos a ele que fizesse registro nosso, a partir da base da cachoeira. São registros raros, pois exigem distanciamento entre fotografo e fotografado, coisa que a maioria dos grupos não incentiva.

Na base, fizemos uma parada maior, talvez de 10 a 15 minutos. Uns aproveitaram para banho e fotos na queda, outros para fazer um lanche quente. A partir desse ponto, as trilhas ficariam de navegação um pouco menos complexa e um eventual perdido seria algo mais fácil de lidar. Alcancei o Douglas e deixamos que o Lacerda puxasse a frente nesse trecho para que praticasse a leitura de rastros e a navegação. Depois de algumas erradas, conseguiu engrenar e ganhou distância. Ao cruzarmos o rio pela última vez, seguimos por cerca de uma centena de metros o rastro errado, bastante sinalizado com fitas vermelhas, até que a conferência indicasse estarmos em caminho diferente do pretendido. Parte do grupo resolveu cacifar e, aproveitando que ainda havia algum tempo para o resgate previsto, buscar cumear o Chapéu de Sol. Nesse fito prosseguiram o Rafael, o Catiorro, a Mina, Leticia e o Denis. Retomamos a dianteira do grupo remanescente e tocamos para o M22, com o Douglas na leitura dos rastros e eu na conferência de rumo e divergências. A nós, somaram-se a Michele, a Fram e o Diego e em passo tranquilo, às 13h58 alcançamos o Marco 22. Algumas fotos e registros e tocamos para o quiosque Lacerda e os almejados pastéis e quitutes.

O grupo da dianteira, composto pelo Lacerda, a Lanny e o Cicero já nos esperava lá. O Márcio, a Lanny e o Cicero haviam chegado às 13h17, pouco antes do Felipe que chegara às 13h45.

Ao chegar no quiosque, o Douglas me apresentou a vista estonteante que se divisa, a partir dali para toda a parte da serra que havíamos percorrido nos últimos dois dias. Claramente visíveis, sob o forte sol vespertino, o perfil das montanhas, com o Siririca ao centro, ornado de suas placas funcionais e históricas. Os Agudos, o Corocoxós… o Araponga, que acabáramos de descer. Passei algumas vezes por ali e essa foi a primeira vez que tive noção da beleza que esse ângulo oferece.

Busquei uma coca-cola zero, encomendei o pastel, pequei um pacote de mandioca chips, cumprimentei o Lacerda que já descansava e retornei para registrar a chegada do trio Michele, Fram e Diego.

O Manoel chegou pouco depois, às 15h05, vindo do ataque às Cachoeiras Gêmeas. Entre ir e retornar, foi necessário desviar do caminho cerca de 1h30. Para humanos normais, considere como necessário três horas.

Mais um tempinho, às 15h33, o Rafael e o Catiorro, que compunham a dianteira do grupo que tentara a ida ao Chapéu de Sol chegou. E às 15h40 a trupe estava novamente completa. Alguns minutos de descanso adicionais, pastéis e refrescos e, às 16h20 iniciamos o retorno para São Paulo, fazendo uma longa parada para almoço tardio e janta precoce no Dionisio 88, onde dividi um ótimo parmegiana com fritas. Chegamos no metrô Tatuapé às 22h e às 23h já estava na casa dos meus pais, com a tranquilidade de ter concluído uma grande pernada com total êxito.

A equipe dessa pernada: Douglas Garcia, Rafael Soares, Michele Morais (@caminhosdami), Marcio Oliveira, Mario Flores (@mariofloresarte -Catiorro), Rogério Alexandre, Lanny Pereira, Cicero de Brito(Bigode), Denis Gois, Mina Nakagawa, Diego Lima (@di0_86), Caio Kenji, Felipe Lacerda(@felipelacerdabs), Francislaine Mori (Fram), Manoel Queiroz, Letícia Dutra (@le_dutra13)

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