Trekking na Cordilheira de Huayhuash – Parte 6

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Quando acordo de madrugada pra fazer xixi (o relógio aponta, exatamente, 1 e 30), a lua cheia, num céu despejado de nuvens, realça com seu brilho prateado os cerros que circundam o acampamento, destacando-se o lindo monolito rochoso Padre Eterno.


Por Beatriz Azevedo

Leia a parte 5 do relato

O pueblito de Huayllapa, situado a 3.500 m, é o lugar de menor altitude onde acampamos até agora. Assim desfrutei duma boa noite de sono, já que o frio não foi tão severo quanto o de noites anteriores.

De manhã, um sol radioso, brilhando num céu de brigadeiro, torna amena a temperatura. Aqui, em Huayllapa, banho quente é luxo pra poucos. Ao que parece, só uma casa tem tal conforto. Daí por que os habitantes são tão sujinhos. Eu, caso morasse aqui, também, enforcaria o banho diário. Nem pensar em enfrentar água fria todos os dias. Bem fazem eles!

Saímos às 8 e 20 da vila e, durante quase duas horas, percorremos as estreitas e sinuosas quebradas Milo e Huatiaq. Muita vegetação em seu entorno, destacando-se, em meio aos arbustos floridos, a belezinha amarela das calceolárias, vulgarmente conhecidas como sapatinhos de vênus.

Percorre as duas quebradas um rio, cuja agitada corredeira turbilhona veloz entre as pedras ancoradas em seu leito. Sua nascente origina-se dum dos glaciares que pendem das largas e espalhadas encostas do nevado Ancocancha, situado 3 km além. Durante o trajeto, mulheres, montadas em mulas, envergam, vaidosas, seus chapéus enfeitados com coloridas flores artificiais (algumas delas as usam naturais, colhidas dos arbustos que vicejam em ambos os lados da estradinha).

São acompanhadas por maridos e filhos que caminham junto à montaria. Dirigem-se às plantações de okas, já que estes tubérculos estão no ponto de serem colhidos. À tardinha, retornam pras suas casas em Huayllapa.

A subida é íngreme, e ao sairmos do confinamento da última quebrada, a de Huatiaq, despenca, dum desnível do terreno, uma cachoeira altíssima, formada pelo rio que se origina das águas de degelo do glaciar Ancocancha. Agora, já em espaço aberto, avista-se o cerro Juituhuarco (5.449 m) com sua cumbre e encostas nevadas.

Quebrada Huatiaq – Cordilheira Huayhuash

Eu que largara na frente pra não perder o ritmo, já que Arantza e Milton, como sempre, sobem devagar, chego às 13 horas aos pés do Ancocancha onde apontam suas duas cumbres. O céu, tão límpido pela manhã, agora já se encontra ocupado aqui e ali por pesadas nuvens brancas.

Encontro, já almoçando, o grupo dos 8. Dessa feita, os cozinheiros prepararam massa com atum. Conversando com Otavio (irmão de Vivi, e guia, também, do bando dos 8), descubro que Richardi me repassara uma informação errada (e já não era a primeira vez que o guia se enganara). A montanha que eu supusera ser o Diablo Mudo é, na verdade, o Ancocancha.

Nevado Ancocancha rumo ao acampamento Gashcapampa

Quando Richardi chega com o resto do meu grupo, chamo sua atenção pelo equívoco. Os demais guias, juntamente com os dois cozinheiros, tiram sarro do jovem que se mostra, visivelmente, embaraçado. Fico com pena – tadinho, afinal, é ainda um aprendiz -, e trato de amenizar a situação, explicando que Richardi, devido à inexperiência (afinal, é sua primeira guiada no circuito Huayhuash), não tem obrigação de saber com exatidão os nomes das montanhas. Porém Arantza e Juan tratam de meter o bedelho na conversa e tomam o partido do guri, argumentando que ele só necessita saber as direções certas a seguir, pouco importando o nome dos lugares. Até meu compatriota Milton (jesus cristinho, dai-me paciência!) resolve soltar seu pitaco e, quando reiniciamos a marcha, dá uma letra pra eu pegar menos pesado com o rapaz. Respondo, asperamente, que ele não se meta em assuntos alheios (sou meio barraqueirinha, sim!). Cria-se, assim, um clima um tanto desagradável, e mantenho pelo resto do caminho um silêncio meio emburrado.

&nbsp,Se eles pretendem me transformar na vilã dos pobres e oprimidos, deram com os burros n’água. Ah…essa não!! Penso até que, ao exigir mais do jovem guia, ajudo-o a conhecer melhor a região por onde continuará fazendo suas guiadas, não é mesmo? Aliás, já discutíramos sobre isso, eu, Juan e Arantza. Eles são de opinião que um guia – porque assim é na Europa, eles querem que aqui seja igual – só precisa ter ciência das trilhas, já eu penso o contrário, não basta apenas conhecê-las, tem de, ainda, prestar informações corretas. Uma coisa é ser guia e outra condutor. Richardi estuda pra ser guia, portanto, não é um mero condutor, não!

&nbsp,Embora de curta duração, cai, em meio à tarde ensolarada, uma precipitação de aquanieve. Passamos por uma cruz que marca o local onde bandoleiros assassinaram uma estrangeira e um limenho vindos de Huayllapa. Essa foi uma época em que eram freqüentes os roubos de turistas por nativos assaltantes. Hoje em dia, felizmente, isso não mais acontece. Após o paso Tapush (4.750 m), é possível avistar, agora sim, o Diablo Mudo (5.223 m), descortinando-se lá embaixo, no vale, a laguna Susucocha.

O tempo começa a fechar e somos surpreendidos com a queda brusca duma nevasca que dura uns bons 30 minutos. Embora estejamos cansados, tratamos de apressar o passo até o acampamento Gashcapampa, montado no interior dum curral, onde chegamos às 15:20, encontrando o chão e tetos das barracas branquinhos da neve que há pouco caíra. E o sol volta a brilhar, iluminando o Diablo Mudo (5.223 m) e outros belos cerros despidos de neve, situados ao redor do acampamento.

E o frio tá pegando, prenunciando uma noite daquelas. Meio entediada de estar na barraca, vou até o refeitório. O seu interior, aquecido pelos fogareiros, está bem quentinho, deveras agradável. Sento num caixote e fico de papo com os cozinheiros e arrieros enquanto espero a hora da janta. E, assim, surge a brilhante idéia de encher com água quente uma garrafa de plástico de 500 ml pra aquecer meus pés quando for me deitar. É o que me salva da gélida noite, ao ressuscitar as antigas botijas usadas por minhas tias-avós há 50 anos atrás. Graças a essa enjambração, consigo adormecer com relativo conforto.

P.S.: Sou obrigada a fazer um mea culpa em relação ao meu guia Richardi. Vejamos por quê: trocando informações via email com um dos bascos do grupo dos 8 – Juan – fui informada de que, na verdade, Richardi, e não Octavio, tinha razão quando afirmara que o nevado que eu vira desde que saíra da quebrada Huatiaqa até o ponto onde paramos pra almoçar era mesmo o Diablo Mudo. Putz grila, meu puxão de orelha no guri foi desnessário. Perdóname, muchacho!

Paso Yaucha

Devido ao frio, levanto não uma, mas duas vezes pra fazer xixi durante a madrugada, e, na noite clara, a lua prateia tudo ao derredor. Pela manhã, mesmo com um sol escancarado, a baixa sensação térmica faz doer as pontas dos dedos dos pés e das mãos. Escuto um dos bascos comentar que a temperatura, durante a noite, foi de – 4ºC, o que resta comprovado pela fina camada de neve branquejando o solo e os tetos das barracas.

Partimos às 8, e sobre nós um céu de brigadeiro prenuncia um lindo dia. Um pouco além do acampamento, mais um portão, onde os ingressos são apresentados. Ingressamos na quebrada Ancocancha, um largo vale repleto de pequenas lagunas. Vejo, plantadas nos flancos das montanhas, os primeiros queñuales, árvores típicas dos Andes. Sua copa, formada por folhas miúdas, é frondosa, o tronco, de coloração ocre, é revestido por finíssimas lâminas de casca (parecem papel-seda), cuja função é servir como isolante térmico contra o frio andino. Flores vermelhas caem de seus galhos.

As nuvens formam zonas de sombra nas encostas dos cerros, expondo a superfície áspera e fissurada das rochas. Gosto de vê-las sem a cobertura branca da neve, assim posso apreciar a textura e cor das pedras pelas quais sou apaixonada. Decerto, são mais agressivas que os nevados porque estes são suavizados pelo manto da neve que os protege.

À medida que avançamos em direção ao paso Yaucha (4.750 m) – um suave ziguezague deveras fácil – vão surgindo os nevados. Às 10:20, já no cocoruto do paso, desfruto, deliciada, a visão reluzente das brancas faces ocidentais dos nevados Ninashanca, Rondoy, Toro e Jirishanca. Um espetáculo de encher os olhos! Embora fofos e espessos flocos de nuvens estejam já se agrupando, o sol mantém-se inabalavelmente radioso no céu. E oxalá assim permaneça durante o resto do dia! Ao lado do paso, há um morro cujo acesso até seu topo permite apreciar o Yerupaja e Siula dando a tapa suas caras oeste. Não vou até o final, apenas o suficiente pra poder fotografar os dois gigantes nevados.

Faces Oestes dos nevados Yerupaja, Jirishanca e Rondoy vistos do Paso Yaucha&nbsp,

Como sói acontecer, sempre há uma pendente pedregosa em ziguezague após os pasos. E a que enfrento não foge à regra, conduzindo à quebrada Huacrish, resguardada à direita por uma belíssima muralha formada por numerosos e altos blocos rochosos. Ao longo do declive florescem arbustos de tarwi que exalam um agradável odor adocicado. Um rio de águas claras serpenteia serelepe ao longo da quebrada. Já em terreno plano, rebanhos de touros pastam nos campos.

Durante boa parte do percurso, é possível, olhando pra trás, avistar os imponentes nevados Tsacra e Huacrish. Eu, toda contente, pensando que não havia mais ladeira pra descer, tenho uma desagradável surpresa: eis a minha frente outra pendente, esta sim, extremamente íngreme e tortuosa. Entretanto sou recompensada, enquanto desço o áspero declive, com a visão da superfície verde-esmeralda das águas do belíssimo lago Jahuacocha. Situado lá embaixo, no vale, dá pra ver com nitidez os dois rios que o alimentam. Um deles é o rio Pacclón, o outro é justo o que desce pela quebrada Huacrish, delimitando o seu final uma formidável cachu de uns 200 m de altura.

O sol continua forte e firme reinando no céu. Dessa vez, as fofas nuvens brancas não levaram a melhor, ofuscando seu brilho. Nosso acampamento, o Inca Wain, situa-se em frente às faces oeste dos nevados Rondoy, Jirishanca, Toro e Yerupaja. Chegamos ao acampamento às 13 horas, e, como de hábito, faço meus alongamentos. Os cozinheiros compraram duas ovehas para a pachamanca que será servida no almoço, amanhã. Oba, haverá um festim!!

Neste acampamento, há um pequeno comércio local: numa tendinha, uma índia vende refris, cervejas, toucas e meias. Pergunto se vende cigarros, a resposta é negativa. Aponta com o dedo de sujas unhas, a casinha mais adiante. Dirijo-me até lá. A habitação, tosca, é feita de pedras, teto coberto de palha e chão de terra batida. Muito escura, a moradia lembra uma caverna. A dona, uma mulher de seus 60 anos, parece ter uns 70.

Pergunta enquanto eu a fotografo (essa não se incomoda) se eu não tenho remédio pras dores que sente nos joelhos (provavelmente artrite, devido à idade). Aliás, desde ontem, tem sido uma constante esses pedidos de medicamentos. Um homem e depois uma mulher pediram pastilhas pra garganta. Todos se queixam de que as cidades, onde há farmácias e médicos, localizam-se muito longe. Afora isso, os meios de transportes são os lombos das mulas ou de cavalos, dificultando, sobremaneira, a locomoção. Pobre gente, tão mal tratados e mesmo assim resignados.

Moradia às margens do lago Jahuacocha

Recuso o convite de Vivi pra tomar banho na lagoa. Só de pensar em entrar na água gelada, sinto calafrios. Nananinanão….eu fora! Sento ao ar livre junto a Arantza, Juan e Milton, aproveitando o sol gostosinho do meio da tarde. Aproveito e fumo um cigarro que trago com volúpia e vagar. É o primeiro cigarro em oito dias. O grupo dos 8 também se aquece ao sol, sentados mais adiante de onde estamos. Boquiaberta, vejo bandos de gaivotas voando de lá pra cá. Nunca, nunquinha, imaginaria encontrar gaivotas a 4.000 m de altitude!! Sempre pensei fossem aves marítimas….puxa, que coisa! Ficamos até quase às 17, lagarteando, quando, então, o sol desaparece atrás das montanhas, e a temperatura baixa vertiginosamente.

&nbsp,E o frio começa a pegar, obrigando todos a se recolherem ao interior de suas barracas até a hora da janta. Mais uma vez retorno à leitura do Pólo Sul. Passados quinze minutos, largo o livro sobre a barriga, distraída que sou pelo bramido potente das águas da cachu despencando montanha abaixo. Lembra barulho de ondas batendo na areia….que legal! E continuo prestando atenção aos ruídos a minha volta. Balidos de ovelhas, ainda, soltas no pasto. As risadas de Arantza, provocadas por algo que Juan lhe conta, me fazem sorrir. E a algazarra de vozes masculinas na barraca ao lado, pertencentes a dois bascos do grupo dos 8, desperta-me o desejo de ser uma mosquinha pra escutar a conversa. Fazer o que, né? Admito, gente, o meu lado voyeur vez por outra escapa….assim, sem eu me dar conta. Mas juro, é do bem , podem crer!

Continua…

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