A Travessia

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A seguir A Travessia, 9º capítulo desta história contada em 10 capítulos, escrita para esclarecer alguns mistérios da Serra do Marumbi e aprofundar outros, onde alguns personagens, lugares e acontecimentos são reais enquanto nomes, datas e outros tantos acontecimentos são fictícios. Tudo junto e misturado durante uma hipotética Travessia Alpha-Ômega.

Leia antes os capítulos: 1 –  A MARIA FUMAÇA,  2 –  A CACHOEIRA DOURADA,   3 –  A TRILHA,   4 –  O SOCORRO,   5 –  A ALDEIA  e    6 –  A TEMPESTADE,  7 – O ACAMPAMENTO FANTASMA  e  8  –  O AVIÃO DA SADIA.
Noite terrível aquela. Havia uma sombra esperando no limiar do bosque. Esperava olhando para a barraca com seus olhos verdes e maus. Ficou lá a noite inteira. Anna imaginava que esperava por ela. Dormiu pouco naquela noite com a sombra a vigiando e ela a vigiar a sombra. Faltava coragem para sair da barraca e se limitava a olhar pela fresta da porta. Besteira imaginar que aquela fina camada de nylon poderia proteger alguém de qualquer coisa. Nem da chuva isolava a contento.

Cachorro do mato ou Graxaim

Talvez fosse o riacho. A sombra movia-se bastante, mas sempre conservava respeitosa distância do riacho. Na dúvida preferiu não arriscar, mas foi perdendo o medo com o avançar da madrugada. Começou a sentir alguma segurança no seu lado da água e tinha também uma voz interior. Na verdade não se parecia em nada com uma voz falando com ela. Se começasse a ouvir vozes saberia que estava enlouquecendo.

 Era algo como uma ideia vaga, algum conhecimento que nunca imaginou ter e crescia continuamente dentro da mente. Começou bem confuso no meio da madrugada, no auge do terror, e foi tomando corpo com o passar das horas.
 “A escuridão é mais profunda nas horas que antecedem o amanhecer” – Não cansava de repetir.
 Crescia o desejo de lavar o corpo sujo de sangue e barro naquela água transparente. Deixar a água corrente limpar as dores do espírito e arrastar todo o mal da sua vida pregressa até alguma cachoeira que certamente existiria abaixo. Destruí-lo batendo contra as pedras até só restar a espuma de imaculada brancura.
 A luz ainda esmaecida e difusa da aurora iniciou sua luta suave contra as sombras do bosque e os pássaros iniciaram suas cantorias muito antes disto. Desceu ao riacho com os primeiros raios de sol cortando, inclinados, a cobertura das árvores. Começou pelas roupas, peça a peça, mergulhando na água gelada e esfregando na areia até desaparecerem todas as manchas de sujeira. Um cipó pendente serviu perfeitamente como varal improvisado.
 Ao corpo dedicou mais tempo e atenção. Deitou-se onde a profundidade era maior e deixou a água correr livremente antes de atentar para os detalhes. O corpo acostumou-se com a temperatura da água e sentiu imenso prazer com aquele carinho.
 Ainda notava a presença daquela entidade maligna a espreita nas sombras do bosque, mas o calor do sol e a companhia de pequenos e curiosos beija-flores a enchiam de coragem para desafiá-la desfilando nua fora da barraca. Estava purificada pela água, livre de pecados como Eva no paraíso.
 O ar puro entrava e saia dos pulmões com leveza inusitada e se admirou com pequenas coisas que nunca antes havia percebido. A brisa fluindo pelas curvas do seu corpo, o calor agradável dos raios de sol se concentrando em diferentes partes. Enquanto iluminava intensamente alguns detalhes do entorno também escondia outros e novas perspectivas, contornos e volumes apareciam e sumiam a cada instante.
 Sua visão, olfato, audição e tato estavam extremamente sensíveis e aos poucos percebeu algo muito diferente na clareira da barraca. Primeiro reparou uma distorção da imagem, quase uma lente transparente entre seus olhos e alguns objetos, depois começou a distinguir os contornos destas lentes. Contou sete bem definidos e em circulo a sua volta com os braços levantados, apontando para o alto e para o centro.

Crepúsculo – Fonte ChimaRocks

Estranhamente não sentiu medo ou apreensão e nem tentou qualquer contato, muito depois concluiu que proporcionaram boa parte de sua tranqüilidade naquela tarde.

 De fato eram sete e estavam em constante movimento, mas cada um era de alguma maneira único e transmitiam alguma mensagem que lhe era difícil compreender apesar de todo seu esforço. Desapareceram todas suas necessidades físicas e angustias e sua mente parou de viajar, os pensamentos foram se desvanecendo num suave vazio até desaparecerem totalmente.
 Percebeu que novas entidades, por falta de outra definição melhor, desciam do alto da montanha e substituíram as anteriores numa espécie de rodízio. O processo se repetiu por três vezes com grupos de sete elementos distintos e sempre transmitindo uma mesma mensagem que ia se tornando cada vez mais clara dentro da sua mente vazia até preenchê-la inteiramente.
 “Deus é força inteligentíssima que se detém dentro de mim, dentro de tudo e todos como ponto de chegada e eu instrumento seu para a beleza e a paz. Aliado a meu anjo guardião pelo amor, atraio da substância do Senhor todas as riquezas mentais da inteligência, espirituais da simpatia e materiais do bem estar físico e econômico para minha completa felicidade evolutiva e para que eu também coopere com as pessoas de virtude para a felicidade maior de toda a humanidade. Obrigado Senhor pelos benefícios que recebo agora para dar e embelezar, amar e apaziguar. Adormeço em Vossa infinita sabedoria”.
 Despertou apenas na manhã seguinte com uma fome de leão e calculou que estava em jejum por vinte e uma horas seguidas. Durante este tempo nem pensou em comida, medo ou qualquer outra coisa diferente daquele mantra, mas então comer se tornava urgente. Durante a refeição já estava novamente conectada ao mundo físico e imaginou toda a angústia que sua mãe deveria estar passando nestes dias todos sem notícias.
 Não sabia precisar exatamente quantos dias haviam se passado desde seu último contato. Deveria estar desesperada. Revisou toda sua vida e fez promessas para o futuro. Este seria seu segundo e definitivo nascimento.
 O sol pleno novamente iluminava todo o bosque e não havia mais o menor traço das sombras ameaçadoras que tanto a aterrorizaram. Atrás da barraca cavou um buraco com a ponta do facão e queimou o saco de dormir e algumas poucas peças de roupa ainda sujas de sangue. Jogou todo o fumo nas chamas e esperou o fogo e a fumaça se extinguirem para cobrir tudo com terra. Guardou na mochila só o que era seu e pendurou o restante no varal, mas para onde ir?
 Andou até o riacho e viu que não estava mais sozinha. Na pequena praia de areia, pouco acima, um cachorro do mato saciava a sede despreocupadamente. Colocou-se em alerta ao vê-la e ficaram parados se contemplando por um bom tempo. Talvez dois ou três minutos e deu alguns passos para trás sem se descuidar dela e então se virou e calmamente seguiu para o mato.
 Sem idéia melhor e por puro instinto tomou a mesma direção. Passaram por extenso trecho com enormes e afiadas pedras sobrepostas desordenadamente, umas sobre as outras por entre troncos podres, limo e muita umidade, depois entraram na mata densa e rasteira com taquaras e samambaias.
 O animal prosseguia calmamente a sua frente sempre mantendo uma distância segura e por momentos lhe pareceu que a esperava olhando sua dificuldade em segui-lo por aquele terreno difícil. Vagarosamente subiam a montanha até que desceu um barranco e sumiu no mato. Anna ficou confusa e desorientada ao perder a referencia completamente insólita, mas mesmo assim referencia.
 Observou atentamente ao redor ainda à procura do amigo e no tronco de uma árvore encontrou uma fita adesiva amarela, caminhando até ela conseguiu ver outra mais adiante e se descobriu numa trilha. Os rastros a conduziram a um cume bastante extenso e arborizado e depois desceram a encosta oposta até uma descida d’água quase vertical. Estranhou sua coragem e determinação ao descer pela cachoeira agarrada em raízes aéreas e trepidantes.
 No fundo do vale acompanhou o riacho por alguns metros e reencontrou a trilha subindo a montanha seguinte. A subida foi difícil e exigente lhe obrigando a manobras de contorcionista, mas sobre uma pequena pedra no cume pode ver a próxima montanha muito perto e grandes extensões da represa abaixo.
 A floresta se tornou magnífica e a inclinação suave, muitos pássaros a acompanhavam curiosos quando cruzou o riacho no fundo do vale. Os rastros se firmaram e viraram uma verdadeira trilha facilmente identificável com algumas fitas marcando as árvores. Saiu da floresta diretamente num mirante no momento em que o sol alcançava o horizonte e caminhou por alguns metros sobre a extensa laje de pedra.
 Cenário irresistível e se concedeu ao luxo de apreciá-lo até o final. O horizonte tingido em tons de dourado, a represa banhada em prata e pequenas luzes amareladas já brilhavam aos pés dos morros. Curitiba e arredores cintilavam intensamente num mar de luzes.
 Finalmente sua alma estava leve como a brisa que soprava no rosto e o coração totalmente isento de ansiedade. Pouco faltava para concluir sua grande travessia para uma outra vida.

Cronologia dos capítulos

Continua no capítulo 10 – O BOTECO

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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